quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O (mau) estado da habitação pública em Macau

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
28 de Fevereiro de 2008

Há cerca de dez anos, tive oportunidade de integrar uma delegação da Assembleia Legislativa que se deslocou a Hong Kong para visitar a Autoridade de Habitação daquele território (Hong Kong Housing Authority ou H.A.). A comitiva era encabeçada pelo então deputado Dr. Rui Afonso e pretendia conhecer melhor a actividade do organismo responsável pela implementação das políticas de habitação pública do Governo vizinho, tendo em vista a revisão do regime legal do Instituto de Habitação de Macau. Lembro-me de que Ng Kuok Cheong era outro dos deputados presentes.
Na circunstância, foi-nos explicado que pouco mais de metade da população de Hong Kong vivia em apartamentos construídos pela H.A. e vendidos (a chamada “habitação económica”) ou arrendados (neste caso, “habitação social”) a preços controlados, tendo em conta os rendimentos dos agregados familiares. Visitámos também o andar-modelo de dois novos prédios que a H.A. ia começar a construir e recordo-me de ter ficado positivamente surpreendido com a qualidade dos materiais e acabamentos, ainda que a área de cada fracção fosse reduzida, como é timbre naquele território.
Em 2003, a H.A. deixou de construir unidades residenciais para venda, passando a concentrar a sua acção no mercado de arrendamento. Hoje, possui cerca de 650 000 apartamentos arrendados, alojando dois milhões de pessoas, quase um terço da população de Hong Kong! Ainda assim, a sua previsão é de continuar a disponibilizar cinquenta mil “oportunidades de alojamento publicamente assistido” por ano, englobando a construção de novas fracções para arrendar, a atribuição de subsídios de arrendamento e a concessão de empréstimos bonificados para a compra de casa própria, além da alienação das fracções remanescentes construídas antes de 2003.
A somar a estes números, já de si impressionantes, o Executivo de Hong Kong ainda conta com a colaboração da Housing Society, uma organização privada não-lucrativa que, desde a sua criação em 1948, já providenciou cerca de 67 000 apartamentos para famílias carenciadas (entre arrendados e vendidos a baixo custo), além de ter atribuído, em nome do Governo, 34 000 empréstimos bonificados para aquisição de casa própria.
Viramo-nos para Macau e o que vemos? Segundo os dados disponíveis no sítio do Instituto de Habitação, não é construída habitação social (isto é, para arrendar) no território desde 1992, ano em que foi erguido o Bairro Social da Taipa, com 263 fogos. Antes disso, é preciso recuar até 1988 para encontrar mais uma iniciativa desta natureza: o lançamento do Bairro Social de Mong-Há, com 650 fogos, o maior do género construído em Macau até hoje. Em termos de habitação económica, a mesma fonte indica que, desde 1980, foram adquiridos pela população local 28 000 fogos a preços controlados, o que dá uma média de escassos mil apartamentos por ano. Mesmo em termos proporcionais, a diferença entre as duas regiões é abissal!
Pronto, deixemos de olhar para trás e pensemos o futuro: na apresentação das Linhas de Acção Governativa para 2008, o Chefe do Executivo assumiu que a sua equipa havia sido apanhada de surpresa pela velocidade dos acontecimentos dos últimos anos, daí resultando a não adopção atempada de medidas que contrabalançassem os efeitos perversos do crescimento da economia na vida da população local, e anunciou ou reiterou uma panóplia de esforços, incluindo a construção de dezanove mil habitações públicas até 2012.
Logo a seguir, o que faz o Governo? Põe a concurso público dois lotes de terreno no Patane, que acabam licitados pela astronómica quantia de 1423 milhões de patacas (quase dez vezes o valor-base de licitação), apesar de terem uma área conjunta inferior a 4700 metros quadrados! Acto contínuo, os principais agentes do sector declaram que estes valores deverão arrastar o mercado imobiliário local para uma subida de preços entre 30 e 40% no corrente ano.
No entretanto, vão surgindo mais uns pequenos escândalos com terrenos, como o da antiga central térmica da CEM na Avenida Venceslau de Morais, que só reverteu formalmente para a região na semana passada (basta consultar o Boletim Oficial de 21 de Fevereiro), mas – acusa o deputado Au Kam San – já foi “informalmente” atribuído ao jornal Ou Mun no ano passado, para ali construir a sua nova sede (que, pelos vistos, já começou mesmo a ser construída há algum tempo).
Assim, não há boas intenções que nos valham... Aliás, a Associação de Ciências Sociais de Macau divulgou no ano passado um relatório onde afirmava que, desde o handover, cerca de um quinto da população local foi viver para Zuhai, onde encontra habitações mais baratas e melhor qualidade de vida.
Para inverter esta realidade, Ng Kuok Cheong contrapôs aos números do Governo a necessidade de serem construídas quarenta mil habitações públicas nos próximos cinco anos e desbloqueados projectos desta índole que teimam em não arrancar, como o da Ilha Verde, anunciado já em 2006. Indo mais longe, alvitrou a criação de um fundo para o efeito. O titular da pasta respondeu-lhe com aquilo que já todos sabíamos, de tão óbvio: «não é por falta de um fundo que não se constrói habitação pública». Claro que não! Com um saldo orçamental positivo de quase 22 000 milhões de patacas no ano passado e mais de 3000 milhões só em Janeiro deste ano (o que dá a pecaminosa “sobra” de cem milhões por dia!), nunca seria por falta de um fundo (leia-se, de dinheiro) que o Executivo não providencia tecto a quem dele mais necessita.
Mas, então, porquê? A escalada dos preços do imobiliário começou a desenhar-se há mais de três anos. Será possível que os responsáveis públicos tenham levado tanto tempo a perceber o que estava a acontecer? E conhecendo a morosidade dos processos de construção de habitação pública – arranjar terrenos, lançar concursos, escolher projectos, adjudicar obras, atribuir os fogos –, porque decidiram avançar tão tarde e aos soluços? É difícil imaginar uma resposta que não seja a satisfação de certos sectores empresariais privados, convenhamos...
Chamem-me herege, mas até já começo a admitir que o projecto “Macau, Património Mundial da UNESCO” foi, antes de mais, uma astuta manobra de promoção imobiliária...
A terminar, duas grandes interrogações que me atormentam: com mais 23 hotéis em construção no final de 2007 e outros 33 projectos à espera de aprovação, e com os mais setenta a cem mil trabalhadores não residentes que se dizem necessários para preencher esses novos postos de trabalho, onde vamos todos caber? E a que preço? Se calhar, o melhor é sermos nós, os que cá estamos, a ir viver para os novos hotéis – queira o Governo pagar-nos a conta...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Porquê «O Protesto»?

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
21 de Fevereiro de 2008

«Primeiro, vieram buscar os comunistas
E eu não protestei, porque não era comunista.

Depois, vieram buscar os sindicalistas
E eu não protestei, porque não era sindicalista.

Depois, vieram buscar os judeus
E eu não protestei, porque não era judeu.

Finalmente, vieram buscar-me
E já não restava ninguém para protestar.»


(Martin Niemöller, 1892-1984)

Acedendo ao amável convite que o Jornal Tribuna de Macau me dirigiu, inicio hoje uma coluna semanal que escolhi designar por O Protesto. Porquê O Protesto? Talvez por alguma irreverência que me está no sangue, também por entender que uma coluna de opinião não pode ser acrítica, certamente por olhar à minha volta e assistir a uma realidade que encerra tantos motivos de protesto.
Já sabemos que não há sociedades perfeitas nem governos irrepreensíveis, mas esquecemo-nos muitas vezes de dar o nosso indispensável contributo para que o mundo melhore – até, um dia, os problemas nos tocarem...
Num meio pequeno como Macau, onde “todos se conhecem e tudo se sabe” (pelos vistos, com algumas excepções relevantes, como temos vindo a constatar no mega-processo Ao Man Long e seus derivados...), é particularmente ingrato fazer opinião: qualquer assunto que abordemos acaba sempre por tocar, directa ou indirectamente, em alguém do nosso círculo de conhecimentos, quando não mesmo do nosso meio profissional (ou, ainda pior, familiar). Remetemo-nos, então, ao silêncio ou à verborreia inócua: o profissional liberal e o empresário não opinam porque não querem perder clientes, actuais ou potenciais, assim como o trabalhador por conta de outrem se não manifesta porque não quer ser prejudicado no seu emprego ou, até, perdê-lo.
As maravilhas da tecnologia vieram dar uma pequena ajuda e surgiram, então, os omnipresentes blogues, onde, frequentemente a cobro do anonimato, se opina sobre muito do que por aqui acontece. Percebo essa forma de intervir em Macau, até porque esta terra pode ser francamente madrasta para quem dá a cara pelas suas convicções, mas o anonimato retira impacto às ideias e presta-se a todo o tipo de abusos.
Preferi sempre, por isso, fazer uso do espaço que a comunicação social local me foi proporcionando ao longo dos anos e partilhar abertamente com a nossa comunidade a minha leitura do que por cá ia acontecendo. Sofri alguns dissabores com isso, é verdade, mas é assim que me sinto bem com a minha consciência. É claro que preferia que o debate franco de ideias não fosse personalizado. Eu não o personalizo. Mas nunca deixarei de me manifestar por outros assim o entenderem.
Apesar de tudo, sinto que alguma coisa está a melhorar em Macau: hoje, a população organiza-se mais e luta pelos seus direitos, as associações são mais reivindicativas (até as tradicionalmente alinhadas com o poder), a Assembleia Legislativa deixou de ser uma mera câmara de ressonância do Executivo (apesar de algumas figuras ignóbeis que por lá continuam a pairar) e encontramos também nos media mais gente a exercer individualmente o seu direito ao protesto. Semanalmente, cá estarei a exercer o meu!