Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
20 de Março de 2008
Há quase quatro anos, escrevi no jornal Ponto Final um artigo intitulado «Tiananmen, quinze anos depois», onde referia o seguinte: «recordando a triste efeméride, o telejornal da TDM passou anteontem algumas declarações de manifestantes de 1989 que hoje vivem no estrangeiro. Uma antiga estudante natural de Pequim, actualmente a exercer advocacia em Nova Iorque, afirmava, com muita perspicácia, que o maior legado, pela negativa, da repressão do movimento estudantil foi a criação de uma juventude chinesa completamente apática em relação às questões políticas, apenas interessada em ganhar dinheiro e nada mais». Acrescentava eu: «não tenho dúvidas de que esta apatia política das massas é a atitude preferida da classe dirigente em qualquer ditadura e certamente também no caso chinês, onde para ela muito terão contribuído o forte empenho do Governo central em apagar da memória colectiva os acontecimentos de Tiananmen, usando todo o tipo de mecanismos de filtragem de informações, e o enorme desenvolvimento económico do país nos últimos quinze anos – que terá, inclusive, permitido aos dirigentes nacionais recuperar algum do apoio popular perdido após o massacre da Praça Celestial (...). Hoje, os estudantes chineses manifestam-se muito mais por motivos de nacionalismo (os protestos junto à Embaixada dos EUA em Pequim, depois do bombardeamento da Embaixada da China em Belgrado por aviões da OTAN, são disso um bom exemplo) do que para exigir reformas democráticas». E continuava: «hoje, como há quinze anos, os líderes nacionais continuam a esgrimir incessantemente o argumento da estabilidade política como suporte imprescindível do progresso económico e social da nação, contrapondo-lhe todos os papões possíveis, desde o caos na Rússia pós-soviética até à instabilidade na Formosa após as últimas eleições presidenciais da ilha nacionalista».
Estávamos em Junho de 2004. Hoje, no entanto, quando vejo as notícias dos acontecimentos no Tibete e em outras províncias chinesas (Sichuan, Gansu, Qinghai), sinto que podia ter escrito estas palavras agora e elas continuariam plenamente actuais.
Outro artigo que publiquei no mesmo diário dois meses antes, de seu título «A bestialidade humana», terminava desta forma: «dizia, no início da semana, o porta-voz do MNE chinês que o que se passou com os prisioneiros iraquianos numa prisão sob controlo americano [nota: Abu Ghraib, nos arredores de Bagdade] mostra que todos os países têm problemas de direitos humanos. É provável que não ande longe da verdade. Mas, como bem recordou ontem o senador republicano John McCain [por coincidência, o candidato deste partido às próximas eleições presidenciais norte-americanas], uns divulgam-no, investigam-no e procuram punir os responsáveis, enquanto outros fazem disso o seu modus operandi destituído de qualquer humanidade, em nome do fundamentalismo religioso ou de ideologias totalitárias».
Ouço a pivô do telejornal da CCTV a noticiar, num estilo algo “norte-coreano”, o que se passa na capital tibetana e ocorre-me que também podia ter redigido este texto hoje.
Ainda sobre as habituais declarações do Governo chinês, nunca me esqueci do que uma jornalista europeia baseada em Pequim me disse há poucos anos, mais palavra, menos palavra: «continua tudo igual na China. Nas conferências de imprensa, podes fazer uma pergunta ao porta-voz do MNE de 25 formas diferentes, que ele te dá exactamente a mesma resposta semana após semana, mês após mês».
Afinal, o que mudou na China em termos de direitos humanos? Segundo o relatório anual do Departamento de Estado norte-americano, aquele país deixou de integrar a lista dos «piores violadores dos direitos humanos do mundo», sendo agora um “mero” «país autoritário». Suponho que é tudo, essencialmente, uma questão de termo de comparação: é melhor ser um «país autoritário» do que uma «ditadura repressiva» (caso da Coreia do Norte) ou um regime «horrendo» (como o Sudão), por exemplo... Não sei é se isso poderá ser considerado um progresso relevante ao fim de quase duas décadas pós-Tiananmen.
Quando, em Julho de 2001, o Comité Olímpico Internacional decidiu atribuir a realização dos Jogos Olímpicos de 2008 à cidade de Pequim, o seu então presidente, Juan Antonio Samaranch, defendeu-se das fortes críticas das organizações de defesa dos direitos humanos (e também dos ambientalistas), argumentando que, pelo contrário, aquela escolha constituiria um forte estímulo para a China melhorar o seu registo na matéria. Ouvi o mesmo discurso vezes sem conta na altura e ao longo dos últimos anos.
Contudo, a escassos meses de o país receber o maior acontecimento desportivo mundial, o que podemos constatar? Nomeadamente, o que fizeram as autoridades chinesas em reacção às recentes manifestações (não-armadas) de monges budistas e outros civis contra a presença chinesa no Tibete? Descontando a propaganda – tanto da Xinhua, como da Radio Free Asia – e procurando cingir-nos aos factos confirmados, não conseguimos saber, com rigor, se morreram “apenas” treze pessoas ou algumas centenas, mas sabemos, sem discussão, que foi vedada a entrada de jornalistas e demais cidadãos estrangeiros em território tibetano, que o acesso ao sítio do YouTube esteve (continua?) cortado a partir do Continente por terem sido lá colocados vídeos da repressão policial contra os manifestantes, que o mesmo sucedeu com os sítios de jornais como o inglês The Guardian pela mesma razão, que as transmissões da CNN e da BBC têm sofrido frequentes cortes na China desde o início dos protestos em Lhasa e que, em geral, os sítios estrangeiros que os reportam estão a ser alvo de apertada filtragem, permanecendo inacessíveis aos cibernautas do lado de lá da fronteira. Do mesmo modo, os servidores chineses são alvo de permanente vigilância para garantir que não difundem conteúdos considerados “subversivos”. Se o fizerem, são encerrados. A mera posse de uma fotografia do Dalai Lama constitui um crime punível com pena de prisão.
Perante tudo isto, querem que eu acredite em quê?
quinta-feira, 20 de março de 2008
Querem que eu acredite em quê?
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