Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
13 de Março de 2008
Na passada segunda-feira, teve lugar mais uma sessão de esclarecimento do Governo sobre a revisão das leis eleitorais; desta feita, dirigida aos trabalhadores da Administração. Lá estive e aproveitei o ensejo para reiterar algumas das ideias que aqui deixara há uma semana: no essencial, que o combate à corrupção não é incompatível com a democratização e que o actual sistema eleitoral não concretiza o princípio “Macau governado pelas suas gentes”, repetido até à exaustão pelos nossos governantes em todas as cerimónias com conotação política.
Tive como resposta o argumento da “qualidade”: «a democracia não é só números, mas, sobretudo, qualidade». No contexto em que a frase foi proferida, sou levado a pensar que o Governo considera que a RAEM terá uma democracia de qualidade se o Chefe de Executivo e a maioria da Assembleia Legislativa continuarem a ser designados nos restritos moldes actuais, desde que não haja corrupção eleitoral. No limite, o Chefe do Executivo poderia passar a nomear todos os 29 deputados e teríamos, então, uma “democracia” de excelência. Em alternativa, poderia criar-se um mecanismo de selecção prévia que garantisse que o número de candidatos fosse sempre igual ao número de assentos parlamentares em disputa, à semelhança do que já vem sucedendo com os dez lugares atribuídos por via indirecta...
São sugestões caricatas, claro, mas não menos do que algumas passagens do “documento de consulta” sobre a dita revisão dos normativos eleitorais. Por exemplo, quando se assevera que o princípio “Macau governado pelas suas gentes” já foi «plenamente concretizado» e «a democracia se desenvolve de forma incessante», afirmações sustentadas com o aumento do número de membros da comissão que elegeu o Chefe do Executivo, de duzentos em 1999 para trezentos em 2004, e do número de deputados entre 1999 e 2005, de 23 para 29, incluindo mais quatro saídos do sufrágio universal. Ora, esta evolução, além de estar ainda nos antípodas de uma democracia plena, nada tem de “incessante”, bem pelo contrário: o sistema progrediu nos exactos termos fixados nos Anexos I e II da Lei Básica, e quando esta proporcionou, finalmente, margem de escolha ao Governo da RAEM, este decidiu não avançar nem mais um milímetro que fosse.
Depois, para enjeitar responsabilidades políticas e fugir ao debate, o Executivo nunca perde a oportunidade de reiterar que é a Pequim que cabe decidir o rumo da democratização, misturando poder de iniciativa com poder de decisão final, presumivelmente para tentar inculcar nos menos atentos a ideia de que o nosso sistema político não avança tão-somente porque a mãe-pátria assim o impõe (no mesmo sentido, leia-se a entrevista do director da Cáritas, Paul Pun, ao Clarim de sexta-feira passada). Ora, o que diz a Lei Básica é que, «se for necessário alterar a metodologia para a escolha do Chefe do Executivo em 2009 e nos anos posteriores, as alterações devem ser feitas com a aprovação de uma maioria de dois terços de todos os deputados à Assembleia Legislativa e com a concordância do Chefe do Executivo, devendo o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (ANP) ser informado dessas alterações, para efeitos de ratificação». No caso da alteração do método de constituição da Assembleia Legislativa, o processo é idêntico, mas a comunicação ao Comité Permanente da ANP destina-se apenas a «efeitos de registo».
De resto, nunca ouvi qualquer declaração das autoridades de Pequim recusando a possibilidade de, já em 2009, se democratizar um pouco mais o nosso regime eleitoral. Ouvi, sim, o Chefe do Executivo afirmar, há poucos dias, que o Governo da RAEM não submetera ao Comité Permanente da ANP qualquer proposta ou pedido de informação relativos ao desenvolvimento do sistema político local. A mensagem pareceu-me, aliás, clara: os que vierem a seguir que pensem no assunto, que isso já não é nada connosco...
Termino como comecei: com a sessão de esclarecimento da última segunda-feira. Como também tive ocasião de ali referir, o reforço do combate à corrupção eleitoral é indiscutivelmente importante e as medidas agora propostas um passo na direcção certa, mas «a inclusão de motivos que possam excluir a culpa, permitindo a atenuação da pena, a extinção da responsabilidade e a não pronúncia» dos eleitores envolvidos em casos de corrupção que se arrependam e «estejam dispostos a prestar depoimento» poderá conduzir a um aumento do número de denúncias, mesmo havendo uma diminuição da corrupção em termos absolutos. Em si, este até seria um cenário positivo, por significar maior eficácia do sistema e, logo, menor impunidade para os faltosos. Resta saber se, a acontecer, o Governo não o vai brandir novamente daqui a quatro anos para justificar mais uma pausa no desenvolvimento “incessante” da democracia na RAEM, penalizando, afinal, quem por ela se empenha e denuncia a corrupção.
quinta-feira, 13 de março de 2008
O rumo da democracia: da retórica à realidade
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