quinta-feira, 6 de março de 2008

A reforma adiada do sistema político

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
6 de Março de 2008

Um dos temas quentes da última semana em Macau foi a divulgação das propostas do Governo para a revisão da Lei do Recenseamento Eleitoral, da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa e da Lei Eleitoral para o Chefe do Executivo. Já todos sabemos que “a montanha pariu um rato”, em face do reduzido conteúdo e significado das alterações propugnadas. Dispenso-me de as repetir aqui, assim como de reproduzir as críticas, positivas e negativas, que suscitaram na sociedade local.
Assumo, antes, publicamente a minha própria reacção enquanto cidadão e residente permanente da RAEM: além de desiludido – embora não exactamente surpreendido –, sinto que me passaram um atestado de ignorância! Passo a explicar: se não querem democratizar, um pouco mais que seja, o poder, ao menos que assumam frontalmente essa opção, em vez de a encobrirem com desculpas tão esfarrapadas como a necessidade de “aumentar primeiro a transparência do processo eleitoral”. É claro que esta é uma preocupação legítima e importantíssima, mas porquê considerá-la incompatível com o alargamento do sufrágio universal? Em que medida é que o aumento do número de deputados eleitos directamente – por exemplo, dos actuais doze para catorze – iria colidir com o combate à corrupção? O mesmo se diga do alargamento do colégio eleitoral do Chefe do Executivo. Parece óbvio que uma coisa nada tem a ver com a outra.
Recorde-se o que aconteceu nas últimas eleições para a Assembleia Legislativa que tiveram lugar durante a Administração Portuguesa, em 1996: o grande e inesperado vencedor foi um empresário chamado Chan Kai Kit (também conhecido como o “tailandês”), à frente de pesos-pesados como Leong Heng Teng ou Tong Chi Kin, tendo ainda conseguido fazer-se acompanhar do seu colega de lista David Liu, numa altura em que apenas oito deputados eram sufragados directamente pela população. Especulou-se muito, então, sobre compras maciças de votos e a permeabilidade da população local a esses aliciamentos, mas isso não impediu que os chamados democratas, com parcos recursos financeiros, passassem de um mero sexto lugar nesse ano (elegendo apenas Ng Kuok Cheong, com pouco mais de metade dos votos de Chan Kai Kit) para duas expressivas vitórias em 2001 e 2005 (o “tailandês”, entretanto, desapareceu misteriosamente e ainda hoje consta como “procurado” no sítio do ICAC de Hong Kong, acusado da autoria de uma fraude de 118,5 milhões de dólares numa sucursal do Banco de Agricultura da China).
Pois é, a maturidade política dos cidadãos de Macau tem evoluído bastante e é isso, em boa verdade, que preocupa os poderes instalados, deixemo-nos de ilusões. Mas que representatividade – logo, que legitimidade – pode ter um parlamento em que os titulares de sete dos 29 assentos são nomeados pelo chefe do executivo (que, por sua vez, é escolhido por apenas trezentas almas) e outros dez são eleitos através de um método indirecto onde acaba por haver sempre um único candidato para cada lugar, ao bom estilo das eleições cubanas? E o problema é a corrupção?
Atribuir mais poderes à comissão eleitoral, impor restrições ao financiamento das campanhas ou aperfeiçoar a criminalização de certos actos são tudo iniciativas válidas para combater a corrupção eleitoral, mas a mais eficaz de todas as medidas seria, provavelmente, fazer os cidadãos sentir que o seu voto realmente conta. Corruptíveis, há-os em todas as sociedades, mas quando os eleitores sentem que a única utilidade do seu voto é dar-lhes umas patacas a ganhar, as sementes da corrupção têm mais por onde germinar. Uma democracia profundamente mitigada como a de Macau é um incentivo à corrupção eleitoral. O nosso sistema de eleição indirecta, em particular, promove a ideia de que um lugar na assembleia se alcança, basicamente, com dinheiro. Querem maior incentivo à corrupção eleitoral do que esse?
Uma derradeira nota: o Governo Central gosta de acenar à Formosa com o modelo “um país, dois sistemas”. Seria bom, então, que, quando chamado a discutir o desenvolvimento do modelo, se não esquecesse que os formosinos já escolhem livremente os seus parlamentares e o seu presidente, considere-se aquela ilha um Estado soberano ou não.

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