3 de Setembro de 2009
A 27 de Março de 2000, o Ponto Final enviava um fax ao general Rocha Vieira, interpelando-o sobre as conclusões da comissão de inquérito à FJA. Entre outros aspectos (num conjunto de onze questões), era-lhe pedido que confirmasse se, de facto, apenas dera ordens verbais para a transferência do dinheiro da FCDM para Lisboa e, em caso afirmativo, porquê. Era-lhe, também, perguntado se admitia a hipótese de devolução dessa verba e se apoiava a publicitação das conclusões do inquérito.
O ex-governador preferiu não responder a nenhum destes pontos, optando por distribuir, decorridos dois dias, um texto a toda a comunicação social portuguesa, no qual interpretava as declarações (ou os silêncios, melhor dizendo...) de Edmund Ho na conferência de imprensa do dia 24 como a prova da inexistência de qualquer ilegalidade ou ilegitimidade na atribuição do subsídio da FCDM à FJA, indo ao ponto de afirmar que «essa aplicação de fundos na constituição do património de uma fundação localizada em Portugal estava enquadrada nos objectivos e nas múltiplas outras acções que foram sendo concretizadas pela Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau» e que «o que foi por mim decidido, no âmbito das minhas competências próprias, no sentido de apoiar a formação da Fundação Jorge Álvares, teve total transparência e foi comunicado, em tempo, aos futuros responsáveis pela Região Administrativa Especial de Macau. Foi essa minha decisão, legal e legítima, que permitiu constituir uma instituição vocacionada para a cooperação entre Portugal e Macau que de outro modo não existiria».
O Público do dia seguinte reproduzia o comunicado, à semelhança de grande parte da imprensa portuguesa, mas com a seguinte caixa da jornalista Isabel Braga: «o general nada esclareceu e argumentou com um pormenor: está tudo certo, a prova é que as autoridades chinesas quiseram manter secreto o relatório que mandaram instaurar à situação». E voltava à carga no final da semana, a 1 de Abril, galardoando o ex-governador com mais um «Desce», assim fundamentado: «finalmente. Após meses e meses de silêncio, o general Rocha Vieira resolveu dizer alguma coisa sobre a Fundação Jorge Álvares, entidade privada que ele criou com dinheiro do orçamento de Macau e a que (magnanimamente) preside. Foi preciso as novas autoridades do território dizerem duas coisas: que tinham investigado o assunto; e que, das conclusões secretas da investigação, só podia ser revelado que o general não podia ter feito o que fez. Perante isto, Rocha Vieira disse algo verdadeiramente enigmático: que o facto de o relatório ser secreto provava a sua inocência. Como? Importa-se de repetir?».
O Ponto Final de 31 de Março fazia a cronologia do que se passara dentro da FCDM, segundo o relatório da comissão de inquérito: a 12 de Novembro de 1999, Rocha Vieira encontrara-se com Gabriela César, presidente do Conselho de Administração, dando-lhe instruções verbais para que fosse concedido um subsídio a uma fundação a constituir e informando-a de que a nova entidade iria manter ligações com o Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), organismo sob a tutela do Ministério da Ciência e Tecnologia de Portugal; a 23 desse mês, a FCDM recebia um fax dos dois elementos da comissão instaladora da FJA – Alexandra Costa Gomes e Manuel Coelho da Silva –, solicitando o donativo e reiterando que a FJA iria desenvolver actividades conjuntas com o CCCM, de que Alexandra Costa Gomes era coordenadora; no dia seguinte, cumprindo ordens do governador, o seu chefe de gabinete remetia para a FCDM, a título confidencial, uma carta da Missão de Macau em Lisboa, de que Alexandra Costa Gomes também era coordenadora, e por ela assinada (na mesma altura, o ajudante de campo de Rocha Vieira – que se encontrava em Pequim, na sua derradeira viagem oficial – telefonara da capital chinesa a Gabriela César, comunicando-lhe que o general gostaria que tudo ficasse resolvido o quanto antes e realçando que o montante a conceder seria de cinquenta milhões de patacas); a 25, no decurso de uma reunião do Conselho de Administração da FCDM, o pedido de subsídio era submetido à discussão e aprovado, sem que, no entanto, este assunto tivesse sido previamente fixado na ordem de trabalhos; a 13 de Dezembro, Alexandra Costa Gomes e Manuel Coelho da Silva enviavam novo fax, solicitando a transferência do dinheiro para uma conta bancária do Banco Português do Atlântico em nome da FJA; a 14, a FCDM recebia novo fax de idêntico teor, mas vindo do CCCM; finalmente, a 15 de Dezembro, Gabriela César e Farinha Soares mandavam o BNU transferir o montante para a conta da FJA.
Em outro texto dessa edição do Ponto Final, João Paulo Meneses procurava, então, rematar o assunto com um exercício de perguntas e respostas: «a criação da FJA é uma iniciativa pessoal de Rocha Vieira? Sim, não restam dúvidas (...). De tal forma foi uma iniciativa pessoal que, soube-se agora, alguns dos curadores da Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau nem foram consultados sobre o donativo.
E foi ou não tudo feito à pressa? À pressa e em segredo. À pressa porque, foi revelado na conferência de imprensa de sexta-feira passada, o primeiro sinal foi em Setembro de 1999. A 23 de Novembro é feito um pedido de subsídio e só a 14 de Dezembro é constituída notarialmente a Fundação. No dia seguinte, seguem da FCDM para Lisboa 50 milhões de patacas. Três dias depois é a reunião dos curadores no Mandarim e 24 horas depois acaba a administração portuguesa. Não há dúvidas: Rocha Vieira, com toda esta pressa, parece que adivinhava o que aconteceria se optasse por criar primeiro a Fundação e, depois de explicar os objectivos, pedir o dinheiro já com a RAEM constituída. Por isso, nada melhor do que não haver oposição...
Sinal também do secretismo foram as respostas que Rocha Vieira deu aos jornalistas que, com insistência, lhe perguntavam o que pretendia fazer depois de 20 de Dezembro. Um jornalista do Ponto Final chegou mesmo a perguntar-lhe se iria manter a ligação a Macau. Mas o general nunca se desmanchou...
Como é que Rocha Vieira conseguiu o apoio de todos os antigos governadores? Dois dos antigos governadores, que fazem parte do Conselho de Curadores, garantiram ao Ponto Final, durante estes dois meses e meio, ter dúvidas sobre a forma como nasceu a Fundação. Mas, estando em minoria, não quiseram ser eles “a abandonar o barco” na hora mais difícil. A forma como alguns souberam da Fundação também não deixa de ser sintomática: alguns garantem ter ouvido falar do assunto já em Macau, quando desembarcaram para as cerimónias (...).
Edmund Ho quis proteger Rocha Vieira? Claramente, Rocha Vieira e, talvez mais do que isso, a administração portuguesa de Macau. Todos os sinais apontam para a contenção do Chefe do Executivo, que não quis dizer tudo o que sabe (...). Além disso, há a viagem a Portugal em Maio e quer Macau quer Portugal vão fazer tudo o que for possível para que o assunto não seja abordado. Por isso, nada de deixar feridas abertas (...).
Edmund Ho foi ou não avisado antes? Foi uma das dúvidas iniciais (...). O então governador terá feito com Edmund Ho o que fez com Jorge Sampaio. Directa e indirectamente fez-lhes chegar a informação de que estava a patrocinar uma fundação com o objectivo de aproximar Portugal e Macau. Falta saber se o grau de informação foi mais profundo do que a simples intenção de criar a FJA e se envolveu, por exemplo, a questão do donativo (...).
Porque é que, com toda esta polémica, Rocha Vieira não decidiu devolver o dinheiro à FCDM? Era a solução mais lógica e, pelo menos aparentemente, a de mais bom senso. Até porque em Macau apenas Jorge Rangel apoiou o subsídio. Até curadores como Susana Chou ou Anabela Ritchie decidiram sair no início da polémica. A devolução dos cinquenta milhões acabava por ser a melhor garantia de que a FJA poderia trabalhar na RAEM. Mas isso não aconteceu. Por dois motivos: porque isso seria o reconhecimento de um erro grave (se se devolve é porque se fez mal em aceitar...) e porque a FJA tem um fundo inicial relativamente fraco (...)».
Num registo final, Severo Portela partilhava com os leitores o desabafo que ouvira de colegas da imprensa chinesa: «nem nos tempos mais ásperos, dos mais autocráticos imperadores da história da China, se movimentava o erário público com base em simples ordens verbais. Pelo menos, um, dois carimbos». E fazia o inevitável paralelo: «que diriam os súbditos britânicos se Chris Patten surgisse à frente de uma fundação privada constituída à última da hora – alimentada com dinheiros, públicos e privados, de Hong Kong –, alegando que dera conhecimento desse projecto às autoridades que lhe sucediam, que este se enquadrava no espírito da Declaração Conjunta, e numa linha de rumo qualquer e o que mais entendesse dizer?».
Muito mais haveria a escrever, até porque as ondas de choque deste vergonhoso episódio não se ficaram por aqui, mas esta narração já vai longa e referi, na semana passada, que a «Antologia da transparência» findava hoje – tendo em consideração que a campanha eleitoral para a Assembleia Legislativa está à porta e entendo dever acompanhá-la nas minhas próximas crónicas (haja substrato para isso...).
Deixo para os leitores as conclusões de tudo o que escrevi ao longo de onze semanas. Julgo que apresentei aqui elementos suficientes para que cada um possa fazer uma avaliação relativamente segura dos factos e das intenções que os determinaram.
Não me venha é o senhor general repetir o que disse (com soberba) no Clube Militar em 14 de Junho último: «cumpri o meu dever e nunca deixei de dormir por causa da fundação. Não acredito que haja fundações com maior transparência que esta». Quanto a isso, estamos conversados!
2 comentários:
Obrigado Nuno
Meu caro,
Eu é que agradeço o trabalho empenhado dos jornalistas que, como o JPM, tiveram a coragem de pegar nestes assuntos e lutar pela verdade em circunstâncias tão ingratas. Sem o vosso contributo de então, jamais esta «antologia da transparência» teria sido possível.
Aproveito para adiantar que tenciono trazer mais algumas revelações a lume após as eleições legislativas de Macau. Não necessariamente sobre este assunto, mas ainda envolvendo algumas destas personagens...
Um abraço!
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