Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
16 de Outubro de 2008
O Gabinete para a Reforma Jurídica (GRJ) tem estado a promover estudos para a revisão do Código de Processo Penal de Macau, em vigor há onze anos e meio.
De acordo com os esclarecimentos ontem prestados por um dos seus responsáveis, não foi ainda consultado nenhum especialista português, situação algo estranha se atendermos a que o “pai” do diploma foi, como se sabe, Figueiredo Dias e que este código acompanha de perto o articulado que então vigorava em Portugal.
A Associação dos Advogados de Macau (AAM) também continua de fora nas auscultações já efectuadas, não obstante representar uma das classes profissionais que mais lidam com esta matéria – a par dos magistrados e dos órgãos de polícia criminal.
É certo que o GRJ prevê que este processo legislativo se prolongue até ao final de 2009, havendo, por isso, ainda muito tempo para todas as partes interessadas se pronunciarem, mas algumas opções já tomadas talvez ajudem a perceber um pouco melhor as prioridades daquele gabinete.
Desde logo, recaiu sobre a Universidade de Ciência e Tecnologia (UCT) a escolha do GRJ para a elaboração de um estudo de direito comparado sobre o assunto, o que traz imediatamente à colação as dissensões entre aquele estabelecimento de ensino superior, por um lado, e a Universidade de Macau (UM) e a AAM, por outro, em relação aos cursos de direito. Ora, o Professor Doutor Figueiredo Dias é dos quadros da Universidade de Coimbra e esta é a principal parceira da Faculdade de Direito da UM no fornecimento de docentes e intercâmbio de alunos. Depois, a Faculdade de Direito da UM é onde se concentram quase todos os académicos portugueses desta área que leccionam em Macau. Finalmente, a AAM tem dado muito melhor acolhimento nos seus estágios de advocacia aos alunos da UM do que aos da UCT, por razões objectivas: ao longo dos anos, o curso de direito da UCT tem estado muito mais focalizado no ordenamento jurídico da China continental do que no de Macau, o que conduz a desempenhos desastrosos dos seus licenciados nas provas de acesso ao estágio de advocacia (quem, como eu, teve já oportunidade de lidar profissionalmente com alguns destes licenciados sabe do que estou a falar. Generalizar é sempre um risco e frequentemente uma injustiça, mas que a má impressão ficou, lá isso ficou).
Somando as coisas, percebe-se que talvez não tenha sido mera coincidência, inocente opção procedimental ou assomo patriótico resultar desta colaboração GRJ-UCT a preferência, nesta fase de arranque, pelo exame da legislação processual penal de Hong Kong, da China e de Taiwan, e o convite a académicos mainlanders para colaborarem no projecto.
O lado positivo desta quase evidência é que nos permite ouvir com maior alívio as palavras de Chen Guangzhong, catedrático continental e coordenador da equipa de peritos seus compatriotas convidados, quando garante que não há qualquer intenção de se impor o direito da China no território. Tanto que, segundo ele, foram igualmente analisadas as legislações alemã, francesa e portuguesa, incluindo as reformas do ano transacto ao Códigos Penal e Processual Penal do nosso país.
Pergunto-me é se a UCT – cuja escolha por um organismo governamental, em detrimento da universidade pública, me parece francamente questionável – não irá aproveitar a oportunidade para dar umas “alfinetadas” na sua rival académica e na AAM, que tantos dissabores lhe tem causado. E aí, ainda que livres de eventuais impulsos nacionalistas que poderiam ferir de morte a matriz portuguesa do direito penal e processual penal de Macau – um dos mais nobres legados que aqui deixámos –, continuamos na contingência de o GRJ vir a fazer orelhas moucas aos contributos que os operadores do direito local integrados na AAM e os pensadores deste direito inseridos na UM poderiam emprestar a este importantíssimo processo legislativo.
Os ventos que sopram pedem olhos atentos e sentido crítico apurado: não é só este código; é também a regulamentação do artigo 23.º da Lei Básica – matéria igualmente penal, ainda que com uma carga política muito mais intensa –, é a lei da criminalidade informática – que não deverá demorar muito a ver a luz do dia, a fazer fé em recentes declarações da Secretária para a Administração e Justiça – e é o alargamento dos poderes do Comissariado Contra a Corrupção. Tudo isto num ano em que muito se tem falado na monitorização da Internet, em escutas telefónicas, em detenções de cibernautas e em listas negras de activistas políticos, para impedir a sua entrada no território. Um ano em que ocorreram dois julgamentos conexos de crimes económicos que surpreenderam pela medida das penas de prisão aplicadas (a este respeito, é lapidar a comparação feita pelo jornalista José Carlos Matias no seu blogue O Sínico, em Pesos, Medidas e Proporções). Um ano em que até o Procurador Ho Chio Meng cometeu um enorme lapsus linguae, ao proferir declarações que soaram como uma manifestação de desagrado pela inexistência de pena de morte em Macau, posteriormente esclarecidas em sentido diverso.
Este Governo pode estar bastante fragilizado e em contagem decrescente para as eleições do próximo ano, mas muita água ainda vai correr por estes lados. A proposta de lei da «Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícitos de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas», agora em debate na Assembleia Legislativa, dá-nos um cheirinho do rumo que as coisas poderão tomar nos próximos tempos. Muita atenção, pede-se!
Nota: agradeço o lisonjeiro elogio do Bairro do Oriente a esta crónica, assim como os comentários do Exílio de Andarilho (embora me pareça que o meu amigo AG tenha interpretado as minhas palavras num sentido ligeiramente diferente do que eu tinha em mente).
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
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