30 de Outubro de 2008
A divulgação, há uma semana, do projecto de lei que regulamenta o artigo 23.º da Lei Básica apanhou-me em Pequim, a meio de uma acção de formação, pelo que não acompanhei “em directo” as reacções ao novo articulado, nem tive ainda oportunidade de actualizar devidamente a minha leitura da imprensa local desses dias. Feita esta ressalva, a suma importância do tema impele-me a adiantar já algumas considerações sobre o que fui já conseguindo absorver.
Desde logo, a minha primeira impressão sobre o projecto de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado» é de algum alívio. Não que considere o seu texto imaculado, mas porque lhe reconheço a preocupação de delimitar significativamente o respectivo âmbito de aplicação.
Já lá iremos, depois de uma questão prévia: porquê esta insistência do Chefe do Executivo em avançar com a densificação do artigo 23.º a um escasso ano do termo do seu mandato? Aumento da pressão de Pequim, até para desbravar o difícil caminho ao Governo de Hong Kong? Vontade de agradar às autoridades centrais, a pensar também no seu futuro pessoal pós-2009? Ou, vendo as coisas numa perspectiva benemérita, o desejo, igualmente, de prevenir futuras iniciativas legislativas mais desfavoráveis às liberdades da população de Macau? Este último argumento até pode soar a pura ingenuidade, mas tenho para mim que o conteúdo do projecto está, apesar de tudo, bastante aquém (isto é, bastante mais suave) do que desejariam muitos ortodoxos do sistema. Daí achar que “do mal, o menos” – considerando o ditame da Lei Básica – e admitir que, tendo a RAEM que legislar neste tocante, o nosso Executivo tenha preferido encerrar o assunto de uma forma tão equilibrada quanto possível.
É, contudo, mais do que provável que o motivo decisivo tenha sido o primeiro, com uma ajudinha do segundo. Até porque, cruzando algumas declarações que fui registando aqui e ali, fico com a sensação de que Pequim terá decidido apostar numa nova estratégia de pressão sobre as suas duas regiões “tresmalhadas”: ao invés de apenas continuar a insistir que a regulamentação do artigo 23.º é um dever constitucional, optou por começar a destacar que Macau e Hong Kong são dois espaços privilegiados no contexto nacional, fruto, precisamente, do elenco de direitos que as Leis Básicas lhes conferem. Logo, se querem usufruir das benesses destes normativos, há que começar a cumprir também com as obrigações neles gravadas.
Foi neste sentido que interpretei as palavras do director da Faculdade de Direito de Tsinghua e membro do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, Wang Zhenmin, durante a sua intervenção nas recentes Segundas Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa de Macau, sugerindo que os residentes de Macau deviam pagar um imposto a Pequim e cumprir o serviço militar obrigatório (os nacionais chineses, claro) (*). Aliás, afirmou claramente que os residentes das duas regiões administrativas especiais tinham «muito mais direitos e até privilégios» do que os seus compatriotas do continente, não sendo «verdadeiramente cidadãos chineses» enquanto não começassem a cumprir aqueles dois deveres (Jornal Tribuna de Macau de 21 do corrente).
No dia seguinte, um «mainland legal expert» não identificado declarou ao South China Morning Post que os «Hongkongers should not be reluctant to discharge their constitutional duty while they are eager to enjoy the rights enshrined in the Basic Law», acrescentando que «it would not be in line with the spirit of the rule of law if Hongkongers only fight for rights such as the introduction of universal suffrage while refusing to discharge their duties under the Basic Law, such as enactment of a national security law».
Curiosamente, na mesmíssima altura, numa das aulas de formação que estava a receber em Pequim, ouvi o professor Xu Chongde, do Instituto de Leis da Universidade do Povo, expressar opiniões em tudo semelhantes às de Wang Zhenmin. Mera coincidência? Não creio!
Entrando no articulado do projecto, limito-me a destacar-lhe, por agora, uma virtude e duas aparentes dificuldades. Virtude, como já atrás referi, ao circunscrever o âmbito da criminalização dos diversos actos previstos no artigo 23.º da Lei Básica. Isto é tanto mais visível no caso das actividades das organizações ou associações políticas: perante a vaga expressão da Lei Básica no sentido de serem produzidas leis que proibissem actividades políticas de entidades estrangeiras na RAEM e o estabelecimento de laços entre estruturas locais e estrangeiras de natureza política, o legislador optou por apenas punir os actos das estruturas forasteiras «contra a segurança do Estado» e o estabelecimento de ligações com esse intuito entre estruturas locais e do exterior. Em teoria, uma decisão de aplaudir.
Quanto às dificuldades, afigura-se-me incontornável a indeterminação do que sejam «os actos preparatórios dos crimes» (artigo 9.º). A nota explicativa define-os como os que «preordenam o crime sem iniciar a execução», o que é muito pouco para me deixar descansado. Por outro lado, o escopo do «segredo de Estado» deixa também a desejar, especialmente quando prevê que «os órgãos judiciais devem obter do Chefe do Executivo uma certidão sobre os documentos, informações ou objectos específicos respeitantes a segredo de Estado, sempre que se levantem questões em processo penal; antes de emitir tal certidão, o Chefe do Executivo deve obter documento certificativo do Governo Popular Central» (n.º 5 do artigo 6.º). Até percebo a suposta bondade da previsão normativa, mas não consigo deixar de pensar também no risco que encerra: se a questão se levanta em sede de processo penal, isso significa que o acto já foi praticado e está a ser investigado ou julgado. Logo, parece existir o risco de se ser criminalmente punido pela subtracção de algo que não estava qualificado como segredo de Estado à data da prática do acto...
Desde logo, a minha primeira impressão sobre o projecto de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado» é de algum alívio. Não que considere o seu texto imaculado, mas porque lhe reconheço a preocupação de delimitar significativamente o respectivo âmbito de aplicação.
Já lá iremos, depois de uma questão prévia: porquê esta insistência do Chefe do Executivo em avançar com a densificação do artigo 23.º a um escasso ano do termo do seu mandato? Aumento da pressão de Pequim, até para desbravar o difícil caminho ao Governo de Hong Kong? Vontade de agradar às autoridades centrais, a pensar também no seu futuro pessoal pós-2009? Ou, vendo as coisas numa perspectiva benemérita, o desejo, igualmente, de prevenir futuras iniciativas legislativas mais desfavoráveis às liberdades da população de Macau? Este último argumento até pode soar a pura ingenuidade, mas tenho para mim que o conteúdo do projecto está, apesar de tudo, bastante aquém (isto é, bastante mais suave) do que desejariam muitos ortodoxos do sistema. Daí achar que “do mal, o menos” – considerando o ditame da Lei Básica – e admitir que, tendo a RAEM que legislar neste tocante, o nosso Executivo tenha preferido encerrar o assunto de uma forma tão equilibrada quanto possível.
É, contudo, mais do que provável que o motivo decisivo tenha sido o primeiro, com uma ajudinha do segundo. Até porque, cruzando algumas declarações que fui registando aqui e ali, fico com a sensação de que Pequim terá decidido apostar numa nova estratégia de pressão sobre as suas duas regiões “tresmalhadas”: ao invés de apenas continuar a insistir que a regulamentação do artigo 23.º é um dever constitucional, optou por começar a destacar que Macau e Hong Kong são dois espaços privilegiados no contexto nacional, fruto, precisamente, do elenco de direitos que as Leis Básicas lhes conferem. Logo, se querem usufruir das benesses destes normativos, há que começar a cumprir também com as obrigações neles gravadas.
Foi neste sentido que interpretei as palavras do director da Faculdade de Direito de Tsinghua e membro do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, Wang Zhenmin, durante a sua intervenção nas recentes Segundas Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa de Macau, sugerindo que os residentes de Macau deviam pagar um imposto a Pequim e cumprir o serviço militar obrigatório (os nacionais chineses, claro) (*). Aliás, afirmou claramente que os residentes das duas regiões administrativas especiais tinham «muito mais direitos e até privilégios» do que os seus compatriotas do continente, não sendo «verdadeiramente cidadãos chineses» enquanto não começassem a cumprir aqueles dois deveres (Jornal Tribuna de Macau de 21 do corrente).
No dia seguinte, um «mainland legal expert» não identificado declarou ao South China Morning Post que os «Hongkongers should not be reluctant to discharge their constitutional duty while they are eager to enjoy the rights enshrined in the Basic Law», acrescentando que «it would not be in line with the spirit of the rule of law if Hongkongers only fight for rights such as the introduction of universal suffrage while refusing to discharge their duties under the Basic Law, such as enactment of a national security law».
Curiosamente, na mesmíssima altura, numa das aulas de formação que estava a receber em Pequim, ouvi o professor Xu Chongde, do Instituto de Leis da Universidade do Povo, expressar opiniões em tudo semelhantes às de Wang Zhenmin. Mera coincidência? Não creio!
Entrando no articulado do projecto, limito-me a destacar-lhe, por agora, uma virtude e duas aparentes dificuldades. Virtude, como já atrás referi, ao circunscrever o âmbito da criminalização dos diversos actos previstos no artigo 23.º da Lei Básica. Isto é tanto mais visível no caso das actividades das organizações ou associações políticas: perante a vaga expressão da Lei Básica no sentido de serem produzidas leis que proibissem actividades políticas de entidades estrangeiras na RAEM e o estabelecimento de laços entre estruturas locais e estrangeiras de natureza política, o legislador optou por apenas punir os actos das estruturas forasteiras «contra a segurança do Estado» e o estabelecimento de ligações com esse intuito entre estruturas locais e do exterior. Em teoria, uma decisão de aplaudir.
Quanto às dificuldades, afigura-se-me incontornável a indeterminação do que sejam «os actos preparatórios dos crimes» (artigo 9.º). A nota explicativa define-os como os que «preordenam o crime sem iniciar a execução», o que é muito pouco para me deixar descansado. Por outro lado, o escopo do «segredo de Estado» deixa também a desejar, especialmente quando prevê que «os órgãos judiciais devem obter do Chefe do Executivo uma certidão sobre os documentos, informações ou objectos específicos respeitantes a segredo de Estado, sempre que se levantem questões em processo penal; antes de emitir tal certidão, o Chefe do Executivo deve obter documento certificativo do Governo Popular Central» (n.º 5 do artigo 6.º). Até percebo a suposta bondade da previsão normativa, mas não consigo deixar de pensar também no risco que encerra: se a questão se levanta em sede de processo penal, isso significa que o acto já foi praticado e está a ser investigado ou julgado. Logo, parece existir o risco de se ser criminalmente punido pela subtracção de algo que não estava qualificado como segredo de Estado à data da prática do acto...
O debate continua nas próximas semanas. Façamos bom uso dele!
(*) Depois da publicação desta crónica, o jornalista da Rádio Macau e meu amigo José Carlos Matias esclareceu-me que, segundo terá apurado após ouvir Wang Zhenmin, não há serviço militar obrigatório na China, pelo que ou este se equivocou ou houve um erro na tradução das suas declarações.
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