Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
22 de Janeiro de 2009
Há dois dias, quando me preparava para assistir pela televisão à tomada de posse do 44.º presidente dos Estados Unidos da América, senti que esse seria o tema inevitável da minha crónica desta semana. Por outro lado, ocorreu-me precisamente a mesma preocupação que o director do JTM expressou no início do seu editorial de ontem: neste momento, é quase impossível ser-se original quando se escreve sobre Barack Obama, tal tem sido a sua exposição mediática nos últimos tempos, em particular nos dois meses e meio que decorreram desde a retumbante vitória nas eleições presidenciais. Tanto que, quando uma conhecida jornalista do Público discorreu sobre o pesado fardo do sucessor de George W. Bush (em texto reproduzido no Ponto Final de ontem), logo choveram mensagens de leitores no sítio do jornal na Internet, acusando-a de mera reprodução do que diversas publicações internacionais haviam já recentemente escrito e apodando-a, por isso, de tradutora, em vez de profissional da imprensa.
Ainda assim, vamos encontrando, aqui e ali, algumas frases felizes marcadas pela originalidade. Uma delas veio de João Miguel Tavares, do Diário de Notícias, que comparou o novo líder norte-americano com os dirigentes políticos portugueses nestes termos: «isto é como olhar para o Ferrari da garagem do vizinho e só ter uns Renault 4L à disposição» (o artigo integral pode ser lido no JTM de ontem). Enquanto via e ouvia Barack Obama a discursar perante os seus compatriotas, também pensei nisso. Não nestes exactos termos, claro, mas confrontando a eloquência e elevação das palavras daquele homem com a postura e a linguagem da generalidade dos actores da cena política portuguesa. Que embaraçosa – até desmoralizante – diferença, Senhor!
Vai daí, estou a assistir ao telejornal da TDM de ontem, que abriu com a cerimónia de Washington, e o que me aparece a seguir àquelas imagens marcantes? A reportagem de mais uma reunião entre representantes do Governo de Macau e a Segunda Comissão Permanente da Assembleia Legislativa sobre a proposta de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado», concluída com as declarações do inenarrável presidente da comissão. Renault 4L? Não, o meu primeiro carro foi um velhinho Renault 4 GTL e tenho muita consideração por aquele ícone da história automóvel europeia. O que temos aqui é bem pior, para mal dos nossos pecados!
Dizem que cada povo tem os dirigentes que merece. Os americanos, pelos vistos, levaram oito anos a perceber que mereciam melhor, mas chegaram lá – pelo menos, por agora (veremos se Obama estará à altura das expectativas, se é que alguém alguma vez poderá estar ao nível de tão elevada fasquia). E nós, nesta minúscula, mas prendada, parcela de terra? Não merecemos melhor do que isto?
Leio no Público que a China terá censurado partes do discurso inaugural de anteontem, nomeadamente as referências ao comunismo, quer na transmissão em directo, quer na tradução chinesa disponibilizada pelos seus media. Não querendo invocar situações retrógradas que estão na ordem do dia num país aqui perto, considero quase um crime de lesa-majestade alguém censurar uma prédica como aquela. Mas fizeram-no, porque o povo tem que ser protegido e não pode ouvir falar nas «alianças sólidas e convicções fortes» que foram tão importantes como as armas para enfrentar o fascismo e o comunismo. E o povo também não pode ser intoxicado com recados aos líderes mundiais «que procuram semear o conflito ou culpar o Ocidente pelos males da sua sociedade». Assim como não pode saber que «os que se agarram ao poder pela corrupção e engano e silenciamento dos dissidentes (...) estão no lado errado da história».
Nada disto pode ou deve o povo saber. Afinal, o que o povo quer não é apenas «participar num convívio, com uns beberetes», como ainda agora veio dizer um administrador da Fundação Macau para justificar os mais de cem milhões de patacas que o organismo pensa gastar em subsídios a «jantaradas» comemorativas do 60.º aniversário da implantação da República Popular da China e do 10.º aniversário do handover de Macau? Como dizia o meu amigo Emanuel Graça no Hoje Macau, «aqui a conversa é outra: pagam-se jantares comemorativos», não lançamentos de livros, exposições ou palestras.
Na sua caminhada vitoriosa rumo à Casa Branca, Barack Obama foi-nos habituando a gestos nobres e mensagens profundas. Ao ser solenemente empossado, declarou aos seus concidadãos que era chegada «a hora de reafirmar o nosso espírito de resistência, de escolher o melhor da nossa história, de carregar em frente essa oferta preciosa, essa nobre ideia, passada de geração em geração: a promessa de Deus de que todos os homens são iguais, todos são livres e todos merecem uma oportunidade para lutar pela sua completa felicidade». E concluiu: «que seja dito aos filhos dos nosso filhos que, quando fomos testados, recusámos que esta viagem terminasse, que não recuámos nem vacilámos; e com os olhos fixos no horizonte e a Graça de Deus sobre nós, levámos adiante a grande dádiva da liberdade e entregámo-la em segurança às futuras gerações».
Já o nosso Governo, quando se dirige aos seus concidadãos em momentos que vão moldar o futuro desta sociedade, serve-se recorrentemente de prosas deste calibre: «amor à Pátria e amor a Macau, de corpo e alma, têm sido uma tradição por excelência dos residentes da Região. Após o retorno à Pátria, o espírito deste amor transformou-se numa força motriz para a construção e o desenvolvimento da Região, configurando-se uma noção comum em que compete à RAEM o cumprimento da missão de defesa da segurança nacional» (ou outra missão qualquer, dependendo da circunstância).
Por favor, censurem-nos!
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