Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
30 de Janeiro de 2009
Contrastando profundamente com o ambiente festivo que se vivia no território, as notícias que me iam entrando em casa sempre que ligava o televisor nos primeiros dias deste Ano Lunar do Búfalo mostravam um planeta em aparente caos, entre guerras, intolerância política, racial e religiosa, criminalidade violenta, corrupção, falências, desemprego, fome, doenças e tantas outras maleitas – umas que parecem recuar até onde a nossa memória alcança e ainda e sempre sem fim à vista; outras bem mais recentes, mas não menos chocantes.
Neste contexto, Macau assemelha-se a um pequeno oásis de segurança e estabilidade, se bem que não para todos. Aliás, o boom económico dos últimos anos trouxe, como se sabe, o efeito reverso de agravar as dificuldades de muitos residentes, acentuando as desigualdades sociais entre nós – uma circunstância tão estranha como censurável numa região que registou, nos primeiros onze meses de 2008, um saldo positivo nas suas contas públicas de mais de 86 milhões de patacas diárias!
Entretanto, a crise financeira internacional também nos começou a bater à porta e agora os gestores públicos e privados parecem ter encontrado o argumento ideal para recuarem na partilha da riqueza aqui gerada com quem deveria ser o seu principal beneficiário: a população activa do território.
Já nem falo nos despedimentos em massa na construção civil, pois compreendo que, se obras de grande monta param, não há como manter os milhares de trabalhadores que nelas laboravam. Dizem os manuais de economia que uma das reacções mais adequadas é fortes investimentos em obras públicas e é isso mesmo que está anunciado.
O que me faz uma certa confusão é que uma indústria como o jogo, que cresceu 31% no último exercício anual, careça tanto de cortar de forma imediata e generalizada nas remunerações dos seus colaboradores para se manter competitiva ou simplesmente à tona de água, como alegam os seus responsáveis. É certo que fontes reputadas como o Deutsche Bank, o Morgan Stanley ou o Credit Suisse têm avançado previsões de queda das receitas do sector entre os 4% e os 14% em 2009, mas estamos a falar de uma autêntica máquina de fazer dinheiro, que encaixou quase 110 mil milhões de patacas no ano transacto. Ora, se nem assim há margem suficiente para resistir aos primeiros avisos de abrandamento deste comboio de alta velocidade, então alguma coisa vai muito mal neste reino do vício! Excessiva exposição ao risco, com a construção simultânea de vários projectos de larga escala em Macau, Singapura e Estados Unidos, dirão alguns accionistas que querem processar a administração das Las Vegas Sands. Seja! E a concorrência, que justificações concretas tem para apresentar?
A um leigo na matéria como eu, inebriado por tantos dígitos à esquerda das casas decimais, fica a sensação de que, mais do que uma imposição imediata e inevitável da crise que vem de fora, o que há, neste momento, é o aproveitamento de um pretexto que estava à mão de semear, penalizando, como sempre, o elo mais fraco da cadeia produtiva. Os números dos lucros do jogo nos próximos meses encarregar-se-ão de me desmentir ou não.
Neste cenário, a política laboral do Governo também não é isenta de críticas, quando devia ser um farol para todos os agentes económicos: confrontado com sucessivos recordes de receitas públicas e sem imaginação para aplicar os excedentes orçamentais acumulados ano após ano, o Executivo preferiu generalizar o trabalho precário na administração pública, recorrer aos contratos individuais de trabalho para atalhar benefícios sociais, aumentar os ordenados abaixo do nível da inflação e não actualizar devidamente os diversos subsídios, além de não modernizar o regime de carreiras. Até a única medida positiva relevante avançada neste domínio – o alargamento do regime de previdência – ficou seriamente inquinada por uma lógica de funcionamento irrealista, que pretendeu transformar à pressa o mais humilde dos serventes em gestor de fundos de investimento da finança internacional.
Fruto de tudo isto, vivem-se hoje situações perfeitamente escusadas de iniquidade na administração pública, onde, por exemplo, muitos trabalhadores auferem apenas onze ou quinze dias de férias anuais remuneradas, quando o «Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau» fixa esse número em 22 dias, assim como só começam a beneficiar de assistência médica e medicamentosa gratuita ao fim de seis meses ou de um ano de trabalho, e exclusivamente para os próprios, quando o mesmo diploma determina a sua concessão ab initio ao trabalhador e respectivos membros do agregado familiar.
Agora, com a crise, os nossos governantes dizem que têm que poupar dentro de casa, não aumentando os vencimentos em 2009. Isto, depois de uma inflação recorde de 8,61% no ano passado – superior, portanto, aos 7,27% da última actualização salarial – e de mais um fantástico superávite orçamental, que ia quase já nos 29 mil milhões de patacas no final de Novembro. Na pública, como na privada, o elo mais fraco da cadeia produtiva é quem paga as favas. Mesmo quando ainda não há favas...
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