segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A flexibilidade previsível do Governo

Isabel Castro
Ponto Final
2 de Fevereiro de 2009

Se não tivesse havido qualquer flexibilidade do Governo em relação à diminuição das molduras penais para os crimes mais gravosos previstos na lei de defesa da segurança do Estado, isso é que seria de espantar. É assim que o jurista Nuno Lima Bastos analisa a notícia que dá conta de que o Executivo terá cedido na nova proposta enviada à Assembleia.

Fez finca-pé durante o período de auscultação pública e na proposta que elaborou depois de ter ouvido a voz da população, mas cedeu às pressões do órgão legislativo. Segundo noticiou na passada semana a Rádio Macau, o Governo terá concordado em baixar a pena mínima prevista para os três crimes mais gravosos contemplados na lei de defesa da segurança do Estado.
Para Nuno Lima Bastos, jurista que não escondeu as suas críticas em relação ao processo de regulamentação do Artigo 23º, a atitude do Executivo, proponente do articulado, não constitui uma surpresa.
“Estaria mais surpreendido se tivesse havido inflexibilidade”, comentou Lima Bastos ao PONTO FINAL. “O Governo preferiu deixar esta questão para a sensibilidade da Assembleia Legislativa (AL). Podia tê-lo feito antes, mas entendeu de modo diferente. Mas sempre tive a impressão de que, no fim, iria acabar por prevalecer o entendimento”, analisou.
De acordo com a estação de rádio em língua portuguesa, a versão final do diploma a analisar pela AL deverá incluir algumas alterações, sendo que a que mais se destaca é a diminuição da pena mínima a aplicar aos crimes de traição à pátria, secessão do Estado e subversão contra o Governo Popular Central, fixada em 15 anos.
Recorde-se que desde o início do processo de auscultação que o limite mínimo foi considerado excessivo por vários críticos à proposta, por o considerarem excessivo. Alguns estabeleceram uma comparação com os crimes semelhantes contra a RAEM para sugerirem uma diminuição da moldura penal, lembrando ainda que a que foi proposta é superior à que se aplica para crimes como o homicídio.
Outros houve que defenderam o mesmo utilizando a China como exemplo: embora a pena máxima no Continente para este tipo de delitos seja a perpétua, a mínima é de dez anos de prisão, menos cinco do que a que se pretendia fazer valer em Macau. Este argumento foi amplamente utilizado pelos deputados à AL que não se mostraram convencidos com o conteúdo do articulado e, ao que parece, terá prevalecido em relação à intenção inicial do Executivo.
No site da Assembleia Legislativa ainda não está disponível a nova versão do articulado, que será hoje estudada pela comissão permanente responsável pela matéria. A reunião agendada para esta tarde conta com a presença de representantes do Governo, pelo que a secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan, deverá deslocar-se de novo ao edifício do Lago Nam Van.

Podia ser melhor

Nuno Lima Bastos diz compreender que, “em termos teóricos, os crimes contra o Estado sejam considerados mais graves do que os idênticos contra o território”, acrescentando que “se isto significa que 25 anos como pena máxima é adequado ou não, enquadra-se já no domínio da política penal”.
O jurista considera que, a confirmar-se a diminuição da pena mínima para dez anos, o futuro aplicador da lei poderá ter em consideração a gravidade das consequências dos crimes em causa – se houve perdas humanas ou não decorrentes dos actos praticados contra a segurança do Estado.
Assim sendo, perde parcialmente relevância o argumento que utilizava as penas previstas para os crimes contra a vida como ponto de referência em relação aos abrangidos pela proposta de lei de regulamentação do Artigo 23º da Lei Básica.
Não obstante entender que “estamos no bom caminho”, o jurista não deixa de lamentar que não se tenha feito mais para evitar alguns riscos. “Continuo a entender que os mecanismos de averiguação da subtracção de segredo de Estado ainda oferecem margem de risco”.
Lima Bastos precisa a apreensão que tem e que está relacionada com a declaração a obter junto do Governo Central, entidade que confirma se a matéria em causa em determinado processo é ou não segredo de Estado.
O jurista alerta para o facto de não haver meios para confirmar o conteúdo da certidão em causa e receia que possa indicar como segredo de Estado algo que, à prática dos factos, não era do conhecimento público como sendo informação dessa índole. “Na China tudo é considerado segredo de Estado em determinadas circunstâncias”, afirma ainda.
Também em relação ao crime de sedição o aperfeiçoamento feito poderia ter sido melhor. “Pode haver um efeito de auto-censura em Macau”, aponta.

À espera de Hong Kong

Pormenores legislativos à parte, o jurista afirma que continua “a ter receio das pressões políticas quando um dia a lei for aplicada em Macau”. Subscrevendo uma ideia defendida pelo deputado Ng Kuok Cheong, Nuno Lima Bastos estabelece o paralelismo com sistemas democráticos para defender que, por estas bandas, este tipo de legislação assume contornos mais preocupantes.
“Em regimes democráticos, o Governo acaba por ter mais cuidado neste tipo de processos porque, sendo eleito, está sujeito ao escrutínio popular. Se adoptar determinadas condutas, pode ser penalizado por elas nas eleições seguintes.” Ora, em Macau o caso é diferente. Não só o Chefe do Executivo não é eleito por sufrágio directo e universal, como este método de representação popular só se aplica à minoria dos deputados à Assembleia Legislativa.
Mas há mais. “Num território como Macau, que está sujeito a um Estado que é tudo menos democrático, é óbvio que estes receios têm razão de ser”. Apesar de tudo, ressalva Lima Bastos, “haverá alguma contenção na aplicação desta legislação para acalmar Hong Kong até esta avançar com a regulamentação do Artigo 23º”. Só depois é que se sentirão, entende, as verdadeiras consequências da vigência de uma lei como esta.

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