26 de Junho de 2008
Há muito tempo que ando para escrever umas linhas sobre um tema em relação ao qual incontáveis cidadãos costumam abrir uma orgulhosa excepção à sua, no demais, irrepreensível postura de cumprimento da lei: a contrafacção de produtos.
Ocorreu-me agora o assunto na sequência da primeira condenação de sempre, em tribunais portugueses, de um cibernauta por partilha ilegal de ficheiros informáticos em rede. Trata-se de um algarvio de 28 anos, que foi sentenciado, na semana passada, ao pagamento de uma multa de 1160 euros por ter disponibilizado 146 faixas musicais (uma verdadeira gota de água) na Internet através de sistemas peer-to-peer, como os conhecidos eMule, LimeWire e BitTorrent, violando a legislação de direitos de autor. Sendo este crime punível em Portugal com pena de prisão até três anos, nem se pode dizer que o castigo aplicado tenha sido particularmente duro...
Lembrei-me, também, desta questão a propósito do Euro 2008; nomeadamente, ao ler uma reportagem na imprensa local sobre os equipamentos desportivos piratas que se compram nas “tendinhas”, a escassos metros de distância de estabelecimentos onde os respectivos originais custam dez vezes mais. Não é nada de novo e até podem responder-me que se tratam de diferentes produtos destinados a consumidores distintos, mas fico sempre a cogitar sobre o que passará pela cabeça dos donos daquelas lojas, que têm que pagar rendas, salários, electricidade e outros encargos cada vez mais elevados, e ainda se vêem obrigados a suportar uma concorrência ilegal impune quase paredes-meias consigo.
Traz-me isto à mente um episódio algo hilariante que aqui se passou há pouco mais de uma década. Com o advento do formato VCD, deu-se uma explosão da pirataria de videogramas. Quase de repente, um pouco por toda a cidade, surgiram lojas e bancas de venda de filmes em VCD contrafeitos. O sucesso foi meteórico e a venda e aluguer de discos laser originais entrou em queda livre (cabendo, depois, aos DVD’s aplicar-lhes a machadada final). Entretanto, o Departamento de Comércio norte-americano começou a pressionar fortemente o Governo de Macau para pôr cobro a este oásis de desrespeito pela propriedade intelectual, sob ameaça de imposição de sanções às exportações de têxteis locais para aquele país, e os produtos contrafeitos – não só filmes, mas também música e programas informáticos – começaram, então, a ser apreendidos e destruídos em larga escala. Quando se tornou realmente difícil adquirir aqui este material pirata, o que fizeram uns quantos consumidores? Com o maior dos desplantes, queixaram-se formalmente à Direcção dos Serviços de Economia, alegando que lhes estava a ser cerceado o direito de obter esses produtos a baixo custo! Tão convictos que estavam das suas reivindicações, até fizeram delas eco junto da comunicação social e de diversas associações locais!
Mas nem era preciso recuar tanto para testemunhar o ridículo a que chegámos nesta matéria: bastaria recordar a interminável saga dos “anteneiros” versus TV Cabo, com aqueles a recusarem cessar a captação e distribuição ilegal de canais fechados de televisão nos edifícios do território, por muitas queixas que os proprietários dos canais e algumas instâncias internacionais tenham já formalizado junto da tutela do sector e do próprio Governo de Macau. Há alguns anos, a concessionária começou a recorrer aos Serviços de Alfândega para que estes apreendessem os descodificadores ilegais que os “anteneiros” importavam e de que careciam para desencriptar os sinais dos canais fechados (cuja captação requer uma assinatura). E o que fizeram os “anteneiros”? Com ainda maior atrevimento, queixaram-se à tutela das telecomunicações, solicitando-lhe que pressionasse os Serviços de Alfândega para não exercerem as suas atribuições!
Estou convencido de que esta e outras proezas dos nossos “anteneiros” (como cortar o sinal da TDM a boa parte dos lares de Macau, para chantagear o Governo) são capazes de indignar qualquer leitor sensato. No entanto, é altamente provável que este mesmo leitor indignado se abasteça regularmente de DVD’s contrafeitos em Zuhai. E já pensou que está a fazer praticamente o mesmo que os “anteneiros”? Mesmo obtendo os filmes apenas para consumo próprio, certo é que está a dar zero receitas a quem os tornou possíveis e todas as receitas a uns quaisquer piratas de vão de escada e, eventualmente, a redes criminosas que os abastecem. O mesmo se diga quando vai à Internet e descarrega ilegalmente as centenas ou milhares de músicas que tem no seu computador e no seu leitor de MP3.
A situação é tão grave que, por exemplo, o Governo francês acaba de aprovar um projecto de diploma que prevê o cancelamento do acesso à Internet por períodos entre três meses e um ano para quem descarregue ilegalmente filmes ou música, numa tentativa de reduzir os cerca de mil milhões de downloads ilegais que se estima terem lugar anualmente no país. Há ainda questões técnicas a limar, mas tudo indica que a medida vai mesmo ser posta em prática.
Dir-me-ão que os CD’s e os DVD’s (ou os videojogos) estão muito caros. Em Portugal e em diversos outros países ocidentais, concordo; aqui, não exageremos...
Certo é que, à conta desta atitude legal e culturalmente laxista para com a pirataria, já não há uma loja de música decente em Macau e as poucas onde ainda se adquirem filmes originais têm pouca oferta e funcionam em instalações pouco menos que miseráveis, salvo uma ou outra excepção. Os cinemas também são a pobreza franciscana que se conhece. Um artista como o consagrado Nuno Barreto recusa-se a expor as suas obras aqui, tão farto que está de as ver ilegalmente duplicadas em ateliers de artistas de ambos os lados da fronteira. E por aí adiante...
Ao contrário do que, por incrível, já ouvi da boca de pessoas que tenho em boa conta e tomo por inteligentes, ter camisas Boss, relógios Rolex ou colecções de milhares de CD’s ou DVD’s não é um direito fundamental. Esses são os que constam da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Quanto ao resto, o direito à cultura e ao lazer não pode ser confundido com uma carta branca para todos os desmandos consumistas; muito menos, ao arrepio dos mais elementares direitos de quem trabalha honestamente para criar e produzir os bens que alimentam os nossos desejos.
Ocorreu-me agora o assunto na sequência da primeira condenação de sempre, em tribunais portugueses, de um cibernauta por partilha ilegal de ficheiros informáticos em rede. Trata-se de um algarvio de 28 anos, que foi sentenciado, na semana passada, ao pagamento de uma multa de 1160 euros por ter disponibilizado 146 faixas musicais (uma verdadeira gota de água) na Internet através de sistemas peer-to-peer, como os conhecidos eMule, LimeWire e BitTorrent, violando a legislação de direitos de autor. Sendo este crime punível em Portugal com pena de prisão até três anos, nem se pode dizer que o castigo aplicado tenha sido particularmente duro...
Lembrei-me, também, desta questão a propósito do Euro 2008; nomeadamente, ao ler uma reportagem na imprensa local sobre os equipamentos desportivos piratas que se compram nas “tendinhas”, a escassos metros de distância de estabelecimentos onde os respectivos originais custam dez vezes mais. Não é nada de novo e até podem responder-me que se tratam de diferentes produtos destinados a consumidores distintos, mas fico sempre a cogitar sobre o que passará pela cabeça dos donos daquelas lojas, que têm que pagar rendas, salários, electricidade e outros encargos cada vez mais elevados, e ainda se vêem obrigados a suportar uma concorrência ilegal impune quase paredes-meias consigo.
Traz-me isto à mente um episódio algo hilariante que aqui se passou há pouco mais de uma década. Com o advento do formato VCD, deu-se uma explosão da pirataria de videogramas. Quase de repente, um pouco por toda a cidade, surgiram lojas e bancas de venda de filmes em VCD contrafeitos. O sucesso foi meteórico e a venda e aluguer de discos laser originais entrou em queda livre (cabendo, depois, aos DVD’s aplicar-lhes a machadada final). Entretanto, o Departamento de Comércio norte-americano começou a pressionar fortemente o Governo de Macau para pôr cobro a este oásis de desrespeito pela propriedade intelectual, sob ameaça de imposição de sanções às exportações de têxteis locais para aquele país, e os produtos contrafeitos – não só filmes, mas também música e programas informáticos – começaram, então, a ser apreendidos e destruídos em larga escala. Quando se tornou realmente difícil adquirir aqui este material pirata, o que fizeram uns quantos consumidores? Com o maior dos desplantes, queixaram-se formalmente à Direcção dos Serviços de Economia, alegando que lhes estava a ser cerceado o direito de obter esses produtos a baixo custo! Tão convictos que estavam das suas reivindicações, até fizeram delas eco junto da comunicação social e de diversas associações locais!
Mas nem era preciso recuar tanto para testemunhar o ridículo a que chegámos nesta matéria: bastaria recordar a interminável saga dos “anteneiros” versus TV Cabo, com aqueles a recusarem cessar a captação e distribuição ilegal de canais fechados de televisão nos edifícios do território, por muitas queixas que os proprietários dos canais e algumas instâncias internacionais tenham já formalizado junto da tutela do sector e do próprio Governo de Macau. Há alguns anos, a concessionária começou a recorrer aos Serviços de Alfândega para que estes apreendessem os descodificadores ilegais que os “anteneiros” importavam e de que careciam para desencriptar os sinais dos canais fechados (cuja captação requer uma assinatura). E o que fizeram os “anteneiros”? Com ainda maior atrevimento, queixaram-se à tutela das telecomunicações, solicitando-lhe que pressionasse os Serviços de Alfândega para não exercerem as suas atribuições!
Estou convencido de que esta e outras proezas dos nossos “anteneiros” (como cortar o sinal da TDM a boa parte dos lares de Macau, para chantagear o Governo) são capazes de indignar qualquer leitor sensato. No entanto, é altamente provável que este mesmo leitor indignado se abasteça regularmente de DVD’s contrafeitos em Zuhai. E já pensou que está a fazer praticamente o mesmo que os “anteneiros”? Mesmo obtendo os filmes apenas para consumo próprio, certo é que está a dar zero receitas a quem os tornou possíveis e todas as receitas a uns quaisquer piratas de vão de escada e, eventualmente, a redes criminosas que os abastecem. O mesmo se diga quando vai à Internet e descarrega ilegalmente as centenas ou milhares de músicas que tem no seu computador e no seu leitor de MP3.
A situação é tão grave que, por exemplo, o Governo francês acaba de aprovar um projecto de diploma que prevê o cancelamento do acesso à Internet por períodos entre três meses e um ano para quem descarregue ilegalmente filmes ou música, numa tentativa de reduzir os cerca de mil milhões de downloads ilegais que se estima terem lugar anualmente no país. Há ainda questões técnicas a limar, mas tudo indica que a medida vai mesmo ser posta em prática.
Dir-me-ão que os CD’s e os DVD’s (ou os videojogos) estão muito caros. Em Portugal e em diversos outros países ocidentais, concordo; aqui, não exageremos...
Certo é que, à conta desta atitude legal e culturalmente laxista para com a pirataria, já não há uma loja de música decente em Macau e as poucas onde ainda se adquirem filmes originais têm pouca oferta e funcionam em instalações pouco menos que miseráveis, salvo uma ou outra excepção. Os cinemas também são a pobreza franciscana que se conhece. Um artista como o consagrado Nuno Barreto recusa-se a expor as suas obras aqui, tão farto que está de as ver ilegalmente duplicadas em ateliers de artistas de ambos os lados da fronteira. E por aí adiante...
Ao contrário do que, por incrível, já ouvi da boca de pessoas que tenho em boa conta e tomo por inteligentes, ter camisas Boss, relógios Rolex ou colecções de milhares de CD’s ou DVD’s não é um direito fundamental. Esses são os que constam da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Quanto ao resto, o direito à cultura e ao lazer não pode ser confundido com uma carta branca para todos os desmandos consumistas; muito menos, ao arrepio dos mais elementares direitos de quem trabalha honestamente para criar e produzir os bens que alimentam os nossos desejos.