19 de Junho de 2008
Em finais de Abril último, quando a tocha olímpica estava prestes a percorrer as ruas de Macau, as autoridades locais recusaram a entrada no território a dois activistas pró-democracia de Hong Kong. Na altura, um deles, Michael Mak, declarou ao jornal South China Morning Post que não lhe fora dada qualquer justificação para essa recusa, apenas tendo ouvido um agente policial comentar para outro que a sua visita não era apropriada durante a passagem do símbolo olímpico – alegações que considerou ridículas, até porque o seu objectivo declarado era participar numa conferência médica e não levar a cabo quaisquer acções políticas. Do mesmo modo, o outro activista, Chan Cheong, alegara, debalde, que apenas vinha fazer férias com a mulher (que o acompanhava).
A história repetiu-se há uma semana, ainda que com diferente protagonista: nada mais, nada menos do que a jovem estudante universitária Christina Chan, a tal que brandira uma bandeira do Tibete nas ruas de Hong Kong precisamente aquando da passagem do facho olímpico pela região vizinha. Uma vez mais, a autoridade pública de Macau não se dignou a transmitir à visada o fundamento da decisão de lhe barrar o caminho. Limitou-se a remeter para as «leis de segurança interna» e ponto final.
Quem aqui vive ou nos visita com regularidade já está, certamente, habituado à antipatia militante dos polícias que controlam os documentos de identificação nos postos fronteiriços do território. Por muitas acções e campanhas de relações públicas que o Instituto de Formação Turística ou a Direcção dos Serviços de Turismo promovam, nem a um simples bom dia, seja em que língua for, esses “senhores” respondem, além de jamais sorrirem. Até a polícia de Zuhai é infinitamente mais cortês do que esses indivíduos. Mas, enfim, consegue-se viver com isso... Só que, agora, parecem estar a evoluir da passividade antipática para uma antipatia pró-activa e não fundamentada, que já é motivo de preocupação, quer em termos do respeito devido pela lei e pelos direitos individuais de quem aqui se desloca, quer em termos da imagem externa de Macau.
Desde logo, a recusa de entrada no território a portador de documento de identificação ou de viagem suficiente é, salvo melhor entendimento, um acto administrativo (artigo 110.º do Código do Procedimento Administrativo: «consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta»), sujeito, como tal, ao dever legal de fundamentação: «para além dos casos em que a lei especialmente o exija, devem ser fundamentados os actos administrativos que, total ou parcialmente, decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado» (artigo 114.º, n.º 1, alínea c), do CPA). Não basta, pois, invocar vagamente umas quaisquer «leis de segurança interna». É preciso especificar normas e fazer um esforçozito de hermenêutica jurídica; isto é, explicar em que medida é que esses preceitos se aplicam ao caso concreto.
Vamos, então, às tais «leis de segurança interna». Macau tem, efectivamente, uma Lei de Bases da Segurança Interna, a Lei n.º 9/2002, cujo artigo 17.º, n.º 1, determina que, «na prossecução da actividade de segurança interna, as autoridades policiais podem, no âmbito das respectivas competências e sem prejuízo da observância da lei, determinar a aplicação das seguintes medidas cautelares de polícia: 4) Impedimento de entrada na RAEM ou expulsão de não residentes que, nos termos da lei, sejam considerados inadmissíveis ou constituam ameaça para a estabilidade da segurança interna, ou sejam referenciados como suspeitos de conotações ao crime transnacional, incluindo o terrorismo internacional». Ora, como não acredito que passe pela cabeça de ninguém que Christina Chan (ou Michael Mak ou Chan Cheong) esteja ligada ao crime transnacional, sou forçado a presumir que foi considerada uma pessoa inadmissível ou mesmo uma ameaça para a segurança interna de Macau. Se não fosse verdade, quase pareceria uma brincadeira de mau gosto...
O Serviço de Migração dispõe, ainda, de outro instrumento normativo para filtrar o acesso de “indesejáveis” ao território: a Lei n.º 4/2003, que estabelece os «princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência», segundo a qual «pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes» (artigo 4.º, n.º 2, alínea 3)). Mas que crime poderia Christina Chan estar prestes a cometer em Macau? O de livre pensamento? O de livre expressão?
Admitamos que as autoridades suspeitassem que a estudante tencionava, de facto, efectuar uma manifestação pública unipessoal algures na cidade. A Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio, que regula o direito de reunião e de manifestação, parece reservar o exercício deste direito aos residentes do território («os residentes de Macau gozam do direito de manifestação», pode ler-se no artigo 1.º, n.º 2). Além disso, é necessário um pré-aviso. Sendo Christina Chan uma intrépida activista não residente, poderia estar prestes a cometer esta ilegalidade. Mas é preciso justificar a alegação, coisa que a polícia não fez quando a mandou de volta para casa. E, havendo essa suspeita, por que não lhe revistaram a bagagem, à procura de bandeiras do Tibete ou de faixas ou cartazes com palavras de ordem? Mero comodismo, incompetência ou abuso de poder?
Aliás, segundo ela, não foi sequer interrogada. Terá, simplesmente, invocado que pretendia apenas apanhar um avião para Singapura, de onde seguiria para a Austrália. Presumo, pois, que teria uma passagem aérea ou qualquer outro comprovativo consigo. Não teria sido, então, mais razoável levarem-na até ao aeroporto e meterem-na no avião? Com tão elementar gesto, ficava acautelada qualquer violação da lei e ninguém era indevida e desnecessariamente prejudicado, com vantagens óbvias para a imagem de Macau. Será assim tão difícil as autoridades perceberem isto?
A história repetiu-se há uma semana, ainda que com diferente protagonista: nada mais, nada menos do que a jovem estudante universitária Christina Chan, a tal que brandira uma bandeira do Tibete nas ruas de Hong Kong precisamente aquando da passagem do facho olímpico pela região vizinha. Uma vez mais, a autoridade pública de Macau não se dignou a transmitir à visada o fundamento da decisão de lhe barrar o caminho. Limitou-se a remeter para as «leis de segurança interna» e ponto final.
Quem aqui vive ou nos visita com regularidade já está, certamente, habituado à antipatia militante dos polícias que controlam os documentos de identificação nos postos fronteiriços do território. Por muitas acções e campanhas de relações públicas que o Instituto de Formação Turística ou a Direcção dos Serviços de Turismo promovam, nem a um simples bom dia, seja em que língua for, esses “senhores” respondem, além de jamais sorrirem. Até a polícia de Zuhai é infinitamente mais cortês do que esses indivíduos. Mas, enfim, consegue-se viver com isso... Só que, agora, parecem estar a evoluir da passividade antipática para uma antipatia pró-activa e não fundamentada, que já é motivo de preocupação, quer em termos do respeito devido pela lei e pelos direitos individuais de quem aqui se desloca, quer em termos da imagem externa de Macau.
Desde logo, a recusa de entrada no território a portador de documento de identificação ou de viagem suficiente é, salvo melhor entendimento, um acto administrativo (artigo 110.º do Código do Procedimento Administrativo: «consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta»), sujeito, como tal, ao dever legal de fundamentação: «para além dos casos em que a lei especialmente o exija, devem ser fundamentados os actos administrativos que, total ou parcialmente, decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado» (artigo 114.º, n.º 1, alínea c), do CPA). Não basta, pois, invocar vagamente umas quaisquer «leis de segurança interna». É preciso especificar normas e fazer um esforçozito de hermenêutica jurídica; isto é, explicar em que medida é que esses preceitos se aplicam ao caso concreto.
Vamos, então, às tais «leis de segurança interna». Macau tem, efectivamente, uma Lei de Bases da Segurança Interna, a Lei n.º 9/2002, cujo artigo 17.º, n.º 1, determina que, «na prossecução da actividade de segurança interna, as autoridades policiais podem, no âmbito das respectivas competências e sem prejuízo da observância da lei, determinar a aplicação das seguintes medidas cautelares de polícia: 4) Impedimento de entrada na RAEM ou expulsão de não residentes que, nos termos da lei, sejam considerados inadmissíveis ou constituam ameaça para a estabilidade da segurança interna, ou sejam referenciados como suspeitos de conotações ao crime transnacional, incluindo o terrorismo internacional». Ora, como não acredito que passe pela cabeça de ninguém que Christina Chan (ou Michael Mak ou Chan Cheong) esteja ligada ao crime transnacional, sou forçado a presumir que foi considerada uma pessoa inadmissível ou mesmo uma ameaça para a segurança interna de Macau. Se não fosse verdade, quase pareceria uma brincadeira de mau gosto...
O Serviço de Migração dispõe, ainda, de outro instrumento normativo para filtrar o acesso de “indesejáveis” ao território: a Lei n.º 4/2003, que estabelece os «princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência», segundo a qual «pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes» (artigo 4.º, n.º 2, alínea 3)). Mas que crime poderia Christina Chan estar prestes a cometer em Macau? O de livre pensamento? O de livre expressão?
Admitamos que as autoridades suspeitassem que a estudante tencionava, de facto, efectuar uma manifestação pública unipessoal algures na cidade. A Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio, que regula o direito de reunião e de manifestação, parece reservar o exercício deste direito aos residentes do território («os residentes de Macau gozam do direito de manifestação», pode ler-se no artigo 1.º, n.º 2). Além disso, é necessário um pré-aviso. Sendo Christina Chan uma intrépida activista não residente, poderia estar prestes a cometer esta ilegalidade. Mas é preciso justificar a alegação, coisa que a polícia não fez quando a mandou de volta para casa. E, havendo essa suspeita, por que não lhe revistaram a bagagem, à procura de bandeiras do Tibete ou de faixas ou cartazes com palavras de ordem? Mero comodismo, incompetência ou abuso de poder?
Aliás, segundo ela, não foi sequer interrogada. Terá, simplesmente, invocado que pretendia apenas apanhar um avião para Singapura, de onde seguiria para a Austrália. Presumo, pois, que teria uma passagem aérea ou qualquer outro comprovativo consigo. Não teria sido, então, mais razoável levarem-na até ao aeroporto e meterem-na no avião? Com tão elementar gesto, ficava acautelada qualquer violação da lei e ninguém era indevida e desnecessariamente prejudicado, com vantagens óbvias para a imagem de Macau. Será assim tão difícil as autoridades perceberem isto?
6 comentários:
É, muito simplesmente, miserável.
E indigno o tratmento equiparável a um perigos criminoso transnacional.
E um abuso de direito, interpretado e concretizado por zelotas de farda.
Isto vale para pró Tibete, anti Tibete, a Tibete. O que quer que seja e o que quer que possa ser.
Quanto à questão jurídica posso concordar com o autor na generalidade com excepção da parte relativa ao direito de manifestação. Primeiro não há direito de manifestação apenas e só para residentes. Segundo, há um fosso grande em realização de manifestação por não residente e sem pré aviso e o automatismo, que se pretende inculcar por parte bolotas de farda, de prática de um crime.
PS O meu nome é anónimo. Isto é, até a CTM porventura mandar mais uma machadada no meu direito à privacidade e no sigilo das comunicações.
Antes de mais, obrigado pelo contributo, que é uma das principais razões de ser deste blogue.
No tocante à intenção de a jovem se manifestar ou não, concordo plenamente com a sua crítica ao automatismo da polícia. O que eu quis dizer foi que, mesmo seguindo esse raciocínio, as autoridades tinham, no mínimo, que o fundamentar. Desde logo, deviam ter verificado a bagagem da visitante (afinal, é algo que podem fazer à entrada de qualquer pessoa no território). Se encontrassem algum material susceptível de utilização em manifestações, poderiam questioná-la sobre o assunto e agir em função das explicações recebidas (incluindo a de que estava apenas em trânsito para apanhar um avião). Não é uma conduta que eu aprove, mas sempre revelaria alguma coerência. Impedir a entrada em Macau sem base em indícios concretos é que nunca.
Quanto ao exercício do direito de manifestação, optei deliberamente por usar a expressão «a Lei (...) PARECE reservar o exercício deste direito aos residentes do território», porque não estou totalmente seguro em relação a isto, confesso.
Como já disse, a Lei n.º 2/93/M apenas se refere aos residentes. O articulado podia ter usado uma expressão mais genérica e não o fez, pelo que tenho que presumir que foi intencional a opção do legislador.
A Lei Básica também não esclarece a dúvida, dado que se refere ao direito de manifestação (artigo 27.º) no âmbito do capítulo dos «direitos e deveres fundamentais dos residentes» (Capítulo III).
Ora, uma coisa é garantir expressamente um direito aos residentes e outra completamente diferente é negá-lo aos não residentes - aqui, estamos de acordo. Quid juris, então?
É uma vergonha. E mais nada. O rsto são tretas de jurídicas. Com ou sem legislação. Com ou sem justificação certa. O que eles fazem é errado e antidemocrático e antidireitos. O resto é palheta. E falta de vergonha.
Apoiado.
Parabéns pela coragem.
Obrigado!
Em relação ao comentário das 22:46, não tenha dúvidas de que não considero haver base legal adequada para o Serviço de Migração fazer o que fez à estudante de Hong Kong. Não invocaram nenhuma norma específica quando a "devolveram" a casa, mas as que poderiam invocar também não são, manifestamente, para casos destes, como referi no meu artigo (talvez daí não terem fundamentado a decisão...).
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