O massacre de Tiananmen aconteceu há dezanove anos. Devido à recente tragédia de Sichuan, é provável que as referências à triste efeméride sejam muito discretas este ano. Há quatro anos, publiquei um artigo sobre o assunto no jornal Ponto Final. Reproduzo-o agora. É o meu pequeno contributo para que os acontecimentos e as vítimas de 4 de Junho de 1989 nunca sejam esquecidos - em nome da verdade e da liberdade!
Tiananmen, quinze anos depois
Nuno Lima Bastos
Ponto Final
4 de Junho de 2004
«A única coisa de que o mal precisa para florescer
é os homens de bem nada fazerem»
(Edmund Burke, político irlandês, 1729-1797)
Hoje, quatro de Junho, assinala-se o 15.º aniversário do massacre de Tiananmen. Tudo terá começado a 15 de Abril desse ano de 1989, com o falecimento do anterior Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês (PCC), Hu Yaobang, por muitos considerado um moderado do regime e um reformista. Fora afastado do cargo no início de 1987, acusado pela ala dura do partido de falta de firmeza para com os protestos estudantis que haviam eclodido meses antes em diversas cidades chinesas, exigindo mudanças políticas. Sucedeu-lhe Zhao Ziyang, enquanto Li Peng ascendia ao cargo de Primeiro-Ministro, mudanças que geraram descontentamento nos meios académicos. No dia do falecimento de Hu Yaibang, muitos estudantes desencadeiam manifestações pacíficas em sua memória em Pequim – nomeadamente, na Praça de Tiananmen –, Xangai e outras cidades.
Quando, a 22 desse mês, têm lugar as exéquias oficiais de Hu, encontram-se já cerca de cem mil manifestantes em Tiananmen, não só estudantes, mas também muitos trabalhadores urbanos revoltados com a crescente corrupção estatal e inflação. Três estudantes tentam entregar uma petição a Li Peng, mas este recusa-se a recebê-los. Em protesto, os estudantes começam a boicotar as aulas.
A 26 de Abril, o Diário do Povo, jornal oficial do PCC, publica um editorial com fortes críticas ao que qualifica de «pequeno grupo de conspiradores» que estariam a criar distúrbios com o intuito de derrubar o partido e o sistema socialista. Logo no dia seguinte, milhares de estudantes de mais de quarenta universidades marcham para Tiananmen, em protesto pelo editorial. A 4 de Maio, o próprio Zhao Ziyang, numa reunião com banqueiros estrangeiros, assume-se, em essência, contrário ao controverso texto.
A 13 de Maio, começam as greves de fome na Praça de Tiananmen. No dia seguinte, doze dos mais proeminentes escritores e escolásticos da China comparecem ali, apelando ao Governo que reconheça o que chamam de «movimento patriótico democrático» em curso. Pedem também aos estudantes que cessem a greve de fome. Os seus esforços falham.
Entretanto, o Presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachov, chega a Pequim a 15 de Maio, para a primeira cimeira sino-soviética desde 1959. A comunicação social estrangeira comparece em peso e aproveita para acompanhar simultaneamente os acontecimentos em Tiananmen, assim como os estudantes também aproveitam o momento de maior visibilidade mediática internacional para intensificar os seus protestos.
A 20 de Maio, é declarada a lei marcial em Pequim, mas o avanço das tropas em direcção ao centro da cidade é bloqueado pela população. Os soldados recuam para os arredores da capital.
Dez dias depois, os manifestantes erguem a famosa estátua da Deusa da Democracia, que rapidamente se torna um ícone dos seus protestos nas televisões de todo o mundo, mas representa para os dirigentes da velha nomenclatura uma «arrogante intrusão dos decadentes valores ocidentais no simbólico coração do comunismo chinês, rompendo com a sagrada cosmologia, o feng shui da grande praça», nas palavras do escritor George Black.
As cúpulas do poder vacilam entre o pulso forte de Li Peng, apoiado por Deng Xiaoping, e a moderação de Zhao Ziyang, que chega a encontrar-se com os estudantes (curiosamente, acompanhado do actual primeiro-ministro, Wen Jiabao). O crescente descalabro económico que acompanhava as reformas políticas em curso na União Soviética terá contribuído para assustar ainda mais a linha dura. Por outro lado, entre os muitos milhares de pessoas que foram para as ruas, havia diferentes grupos com diferentes agendas – consequência forçosa da espontaneidade com que os acontecimentos se iam sucedendo –, daí resultando não ser totalmente claro para o Governo com quem negociar e até onde chegariam as exigências dos manifestantes, até porque estas pareciam ir em crescendo, na medida do próprio aumento do apoio à insurreição popular. O que começara como um protesto estudantil tinha-se alargado ao proletariado urbano e a sectores dissidentes do partido. Boa parte da comunicação social chinesa começava a mostrar visíveis simpatias pela causa da democracia e até sectores dos serviços de segurança, dos tribunais e dos militares – a espinha dorsal da ditadura comunista, na leitura ainda de George Black – começavam a libertar-se do férreo controlo do partido.
Finalmente, a 3 de Junho, a ala dura decide retomar o controlo da situação a todo o custo e manda o exército avançar em força. Cerca das 22h00, este começa a disparar contra todos os que tentam barrar o seu progresso. Para diversos estudiosos dos acontecimentos, o verdadeiro massacre de civis tem lugar no decurso destas manobras de aproximação a Tiananmen, face à resistência popular nas ruas, e não na Praça propriamente dita. Ao amanhecer do dia 4, tudo estava consumado.
Recordando a triste efeméride, o telejornal da TDM passou anteontem algumas declarações de manifestantes de 1989 que hoje vivem no estrangeiro. Uma antiga estudante natural de Pequim, actualmente a exercer advocacia em Nova Iorque, afirmava, com muita perspicácia, que o maior legado, pela negativa, da repressão do movimento estudantil foi a criação de uma juventude chinesa completamente apática em relação às questões políticas, apenas interessada em ganhar dinheiro e nada mais.
Não tenho dúvidas de que esta apatia política das massas é a atitude preferida da classe dirigente em qualquer ditadura e certamente também no caso chinês, onde para ela muito terão contribuído o forte empenho do Governo Central em apagar da memória colectiva os acontecimentos de Tiananmen, usando todo o tipo de mecanismos de filtragem de informações, e o enorme desenvolvimento económico do país nos últimos quinze anos – que terá, inclusive, permitido aos dirigentes nacionais recuperar algum do apoio popular perdido após o massacre da Praça Celestial. Há quem fale, até, na existência de uma espécie de conflito de gerações: os estudantes que andavam na casa dos vinte anos em 1989 terão muito menos simpatia pelas cúpulas do poder do que os jovens actuais, que nasceram depois das reformas económicas de Deng Xiaoping. Hoje, os estudantes chineses manifestam-se muito mais por motivos de nacionalismo (os protestos junto à Embaixada dos EUA em Pequim, depois do bombardeamento da Embaixada da China em Belgrado por aviões da OTAN, são disso um bom exemplo) do que para exigir reformas democráticas.
Hoje, como há quinze anos, os líderes nacionais continuam a esgrimir incessantemente o argumento da estabilidade política como suporte imprescindível do progresso económico e social da nação, contrapondo-lhe todos os papões possíveis, desde o caos na Rússia pós-soviética até à instabilidade na Formosa após as últimas eleições presidenciais da ilha nacionalista.
Nesta penumbra feita de permanente doutrinação e intimidação de um lado e indiferença ou temor do outro, as recentes manifestações em Hong Kong exigindo mais democracia – maxime, o sufrágio universal – continuam a ser um verdadeiro farol que não me canso de elogiar, até por contraste com a pobreza de espírito que também reina nesta nossa pequena aldeia. Aliás, em Macau, o Poder não precisa de censurar, porque as pessoas censuram-se a si próprias; não precisa de punir os desvios, porque sãos os próprios cidadãos que traçam a sentença de quem, no normal exercício da sua consciência cívica, se atreve a criticar abertamente o que entende estar mal. Pugnar pela democratização da nossa pequena sociedade implica, assim, um formidável esforço em triplicado: pela evolução do regime político em si, consubstanciado nas leis que o regem, pela mudança da mentalidade das cúpulas e pelo despertar dos cidadãos da letargia em que decidiram encerrar-se.
Li há dias no South China Morning Post que Jiang Yanyong, um cirurgião reformado do exército que se distinguiu durante o surto da pneumonia atípica, dirigiu em Fevereiro passado uma carta aberta aos dirigentes de Pequim, urgindo-lhes que mudassem a avaliação oficial dos protestos de Tiananmen, de um «motim anti-governamental» para um «movimento patriótico». Ao pedido juntou um emotivo relato da agonia e choque que experimentou quando acorreram à sua sala de emergências muitos jovens feridos na noite de 3 de Junho de 1989.
Não sei quanto tempo gestos corajosos como este levarão a humanizar e democratizar a China, mas estou certo de que a História guardará sempre um lugar muito especial para os milhares de pessoas que, na Primavera de 1989, empenharam as suas próprias vidas para lutar pelas suas mais nobres convicções. Para eles vai toda a minha profunda e eterna admiração.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
Tiananmen, dezanove anos depois
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