quinta-feira, 19 de março de 2009

Tanta inabilidade!

Nuno Lima Bastos
19 de Março de 2009

Depois de mais cinco activistas políticos de Hong Kong, incluindo dois membros do Legislative Council, terem sido impedidos de entrar em Macau no último domingo, começa a faltar-me a imaginação para tentar compreender tanta inabilidade política dos nossos governantes.
Há quem entenda que a decisão de autorizar a entrada de quase toda a delegação do território vizinho, deixando para trás um pequeno grupo – o elemento mais polémico e os seus compagnons de route –, era a única solução politicamente viável. Isto porque, depois dos recentes contactos entre Donald Tsang e Edmund Ho em Pequim e de o primeiro ter afirmado publicamente que manifestara ao seu interlocutor preocupação com estes incidentes fronteiriços, barrar toda a gente seria tirar face ao Chefe do Executivo de Hong Kong.
Contudo, perante o tom de desafio com que fora anunciada esta deslocação, a opção inversa – deixá-los entrar a todos – produziria exactamente o mesmo efeito em Edmund Ho: tirar-lhe-ia face. Logo, neste jogo de faces que ninguém queria perder, os jogadores acharam que o empate seria o melhor resultado para ambos.
Uma vez mais, quem ficou a perder foram os direitos, liberdades e garantias consagrados na Lei Básica. Por outras palavras, o segundo sistema. Está visto que quem anda a decidir estas coisas não tem exactamente a mesma escala de valores que eu...
Mais pormenor de face, menos pormenor de Estado de Direito, certo é que a atitude selectiva dos Serviços de Migração deu aos parlamentares e activistas que conseguiram entrar o pretexto ideal para passarem à acção e, assim, ao invés de se limitarem às programadas visitas à sede do Novo Macau Democrático e a algumas atracções turísticas do território, foram até ao Palácio da Praia Grande afixar cartazes com palavras de ordem e entregar uma carta dirigida a Edmund Ho, tudo com enorme cobertura mediática.
Se calhar, alguns burocratas bacocos da nossa máquina administrativa até esfregaram as mãos de contentes, julgando ter agora uma boa justificação para impedir a futura entrada daqueles que participaram na mini-manifestação de domingo. Desenganem-se: para lá da mensagem de protesto contra os entraves politicamente motivados à livre circulação de pessoas entre as duas regiões administrativas especiais, o que o grupo de Hong Kong demonstrou à saciedade – se dúvidas legítimas ainda subsistissem – foi que um gesto organizado e mediatizado de contestação popular ao poder não tem que constituir, automaticamente, um perigo para a ordem pública ou a estabilidade social. Em suma, deu uma lição de civismo político, que desmontou o raciocínio de causalidade entre activistas e “perigosos arruaceiros” que as autoridades locais vinham tentando impingir à opinião pública, retirando, ainda mais, qualquer fundamento válido à conduta dos Serviços de Migração.
No meio de tudo disto, tenho imensa dificuldade em “engolir” as “teorias da conspiração” que começam a surgir; nomeadamente, a ideia de que alguém andará a pôr nomes descabidos na relação das personas non gratas, com o intuito deliberado de criar agitação e prejudicar a imagem de Edmund Ho. É que, depois dos primeiros casos mediáticos, já houve tempo mais do que suficiente para conferirem e corrigirem a lista. E até a incompetência tem limites...
Com conspiração ou sem ela, tenho para mim que, passada a natural indignação do momento, os sectores democratas das duas regiões até agradecem estes gestos do nosso Executivo. Afinal, quando Donald Tsang, ou quem lhe suceder, acenar com a intenção de regulamentar o artigo 23.º da Lei Básica, lá estarão os seus opositores a recordar o que aconteceu em Macau após o arranque de idêntico processo legislativo...
Do mesmo modo, Ng Kuok Cheong e seus pares poderão retirar dividendos eleitorais dos sucessivos contactos com as forças democráticas de Hong Kong (aquelas imagens televisivas de ambos os grupos lado-a-lado na sede do Novo Macau Democrático valem muitos votos), assim como deste autêntico escândalo que tem sido a utilização da Lei de Bases da Segurança Interna como instrumento de censura política.
Enfim, as inabilidades (passe o eufemismo) vão-se sucedendo a um ritmo tal que somos assolados pela óbvia interrogação: este crescendo repressivo – tanto do legislador, como do aplicador – veio para ficar ou é apenas uma fase, associada aos diversos acontecimentos sensíveis, locais e nacionais, que vamos viver ao longo de 2009? Não sei bem. O que sei é que as leis não podem ser interpretadas e aplicadas por fases, em função da agenda política do poder. Muito menos as mais sensíveis, aquelas em que assentam os pilares do sistema. O Estado de Direito não se compadece com isso e o segundo sistema também não!

Nota: agradeço ao Bairro do Oriente a menção desta crónica na sua habitual rubrica «Leituras».

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