quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Antologia da transparência (X)

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
27 de Agosto de 2009

Em virtude de os jornais portugueses de Macau não se publicarem (então) ao sábado, foi na imprensa de Portugal que surgiram as primeiras reacções à conferência de imprensa que Edmund Ho dera na véspera, 24 de Março de 2000, para anunciar as conclusões da comissão de inquérito nomeada para investigar o caso FJA.

O Público, em mais um trabalho do seu correspondente no território, Luís Andrade de Sá («Quando e como tudo se passou»), começava por sumariar o historial do processo que conduzira à atribuição do subsídio de 50 milhões de patacas pela FCDM, segundo o relatório da comissão: «a primeira referência à criação de uma fundação em Lisboa é feita em 12 de Setembro de 1999, durante uma reunião em que participam Rocha Vieira e a administração da FCDM. A justificação dada para a iniciativa foi uma intervenção na área da ciência e tecnologia, ligada ao Centro Cultural e Científico de Macau, que funciona em Lisboa, na dependência do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Em 23 de Novembro, a FCDM recebe um fax da Fundação Jorge Álvares, pedindo um subsídio. Idêntica missiva chega no dia seguinte ao Palácio do Governo, tendo o Chefe de Gabinete do Governador enviado o pedido também para a FCDM. Esta, autorizando o subsídio, decide esperar pelo registo notarial da Jorge Álvares. No dia 13 de Dezembro, uma semana antes da transferência de administração do Território, a FCDM recebe novo fax de Lisboa comunicando que a Fundação Jorge Álvares tinha acabado de ser registada. Um documento com o mesmo teor chega ao Palácio, que o encaminha novamente para a FCDM. No dia 15 de Dezembro, a FCDM envia 50 milhões de patacas para Lisboa, através do BNU».

Em outra peça daquele diário («Rocha Vieira deu ordens verbais para pagar»), Luís Sá destacava que «o juiz que conduziu o inquérito insiste em dizer que a fundação não podia ter sido financiada como foi», enquanto «Edmund Ho, pelo seu lado, escusa-se a comentar a conduta do último governador português. Diz que o general só tem que responder perante Jorge Sampaio». Contudo, «em Belém não há comentários».

Já em relação à FCDM, Edmund Ho não fora tão neutral nas palavras, tendo comunicado aos jornalistas que decidira ordenar a sua fusão com a Fundação Macau, dado que ambas apresentavam «muitas áreas cinzentas».

Quanto aos pormenores do documento elaborado pela equipa presidida por Vasco Fong, o Chefe do Executivo nada mais acrescentara na conferência de imprensa, quedando-se, segundo o Público, pelas generalidades, ao contrário do magistrado, que se não furtara a algumas observações mais concretas, como «a sua convicção de que o conselho de administração da FCDM não tinha poderes para efectuar uma transferência para o exterior superior a quinhentas mil patacas», em face do disposto no «regime financeiro dos serviços autónomos e fundos públicos», lembrando que «não houve uma autorização expressa para aquele movimento de fundos», facto «confirmado por Gabriela César, da administração da FCDM, que disse ter recebido ordens verbais de Rocha Vieira, na altura presidente do conselho de curadores da FCDM, para transferir o dinheiro» (porém, esta discordava de Vasco Fong no tocante aos limites dos poderes próprios da fundação).

Questionado sobre a eventual actividade futura da FJA em Macau, Edmund Ho respondia desta forma: «vou ser franco. Nos últimos dez anos, depois da Fundação Oriente e, agora, com a Fundação Jorge Álvares, a sociedade de Macau não aceita que os recursos de Macau sejam transferidos para fora da região. É necessário tempo para que as pessoas aceitem o que agora não aceitam».

Perante este desfecho da investigação ao financiamento da FJA, o Público atribuía novo «Desce» da semana a Rocha Vieira, acusando-o de ter mandado a FCDM transferir o dinheiro apenas por ordem verbal «para tudo ser mais discreto». E propunha: «o melhor, agora, era encerrar a fundação, devolver o dinheiro e dar o episódio por encerrado. O que impede o general deste acto de contrição?».

Considerando a exiguidade de detalhes por que se pautou a conferência de imprensa de 24 de Março, justifica-se retornar ao Ponto Final desse dia, uma vez que, como referi na minha última crónica, o semanário (que terá tido acesso ao relatório do trio de investigadores) antecipou muito do que Edmund Ho acabaria por, afinal, preferir guardar para si. Por exemplo, que o ex-governador, «enquanto presidente do Conselho de Curadores da FCDM, deveria ter submetido a concessão do subsídio à aprovação daquele mesmo órgão. E a verdade é que, em declarações prestadas à comissão de inquérito, por escrito, vários curadores disseram não ter sido consultados sobre o donativo. Foi o caso de Tavares da Silva, Anabela Ritchie, Edith Silva e do próprio Stanley Ho». Além disso, o general «deveria ter-se considerado impedido (por interesse manifesto na questão) em tudo o que estivesse relacionado com a concessão do subsídio, quer estivesse a actuar na qualidade de governador, quer estivesse a agir como entidade tutelar da FCDM, quer ainda no desempenho das funções de presidente do Conselho de Curadores. E não o fez, como o relatório se encarrega de demonstrar na parte que alude aos factos. Assim, o relatório conclui também, como corolário lógico, que Rocha Vieira violou a lei e que, ao fazê-lo, terá incorrido numa infracção disciplinar grave. Finalmente, o ex-governador é ainda acusado de ter interferido directamente na concessão de um subsídio de montante elevado sem ter fundamento legal para o fazer».

Sobre a actuação do Conselho de Administração da FCDM, a equipa de Vasco Fong terá assinalado que, «ao receber a ordem de Rocha Vieira (uma expressão muito usada ao longo do texto) para a concessão do subsídio, deveria ter diligenciado no sentido de que a ordem fosse dada por escrito. Não o tendo feito, agiu de forma negligente». Ademais, aquele órgão «nunca soube distinguir quando é que Rocha Vieira agia como governador, como entidade tutelar ou como presidente do Conselho de Curadores. E devia ter pugnado por essa clarificação. Não cuidou também de saber para que iniciativas em concreto eram canalizadas as verbas que cedia, como mandam as regras da boa gestão dos fundos públicos. E mais: embora tenha sido intransigente na concessão do subsídio apenas quando a Fundação Jorge Álvares estivesse constituída (...), a verdade é que acabou por atribuir uma verba a uma fundação sem personalidade jurídica, já que esta só se ganha com o reconhecimento. E a FJA, nota o relatório, não estava então reconhecida».

O Conselho Fiscal da FCDM também terá merecido dura reprimenda no relatório: reuniões por realizar, ausência de actas das realizadas, tomada de conhecimento deste e de outros donativos apenas depois de consumadas as transferências – em suma, «um caso grosseiro de negligência e de total alheamento das finalidades do órgão (...). Não se estranha, por isso, o desconforto do presidente do Conselho Fiscal, Stanley Au, até há dias um dos mais acérrimos defensores de que o relatório, por razões de transparência, deveria ser divulgado publicamente em toda a sua extensão».

(a concluir na próxima semana)

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