quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Antologia da transparência (VIII)

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
13 de Agosto de 2009

A notícia do subsídio ao IIM aprovado por Jorge Rangel chegava à imprensa de Portugal no mesmo dia em que aqui fazia a manchete do Ponto Final: na sua edição de 25 de Fevereiro de 2000, o Público, sob o título «Jorge Rangel imita Rocha Vieira», contava que «um membro do último governo português de Macau atribuiu um subsídio a uma entidade da qual se tornou presidente. “Déjà vu”? Sim, a história repete-se, mas o emaranhado de coincidências não acaba aqui. É que o conceito do “Macau português” transferiu-se para Lisboa, com a Fundação Jorge Álvares, de Rocha Vieira, a querer ser o “pivot” de grande parte das organizações criadas em torno do território do Oriente». Depois, o Público reproduzia os pormenores trazidos a lume pelo Ponto Final sobre os 3,6 milhões de patacas concedidos pelo ex-secretário-adjunto ao seu próprio instituto (descritos na minha última crónica).

Reportando-se à FJA, o matutino lisboeta encarava-a como uma espécie de «continuidade em funções» de Rocha Vieira: «com a instauração da RAEM, este conceito de Macau deslocou-se do rio das Pérolas para o espaço das Casas de Macau, das fundações, dos institutos e centros que foram criados e que, na sua maioria, são controlados pelo general ou por homens da sua confiança. A esta rede escapam apenas a Fundação Oriente, de Carlos Monjardino, e a Missão de Macau em Lisboa, tutelada pelo governo da RAEM. Mesmo o Centro Cultural e Científico de Macau, na dependência do Ministério da Ciência e Tecnologia, não está ao abrigo da influência da nova Fundação e é assim que, mesmo tendo deixado de ser governador, Rocha Vieira assume um papel incontornável na maioria das iniciativas ligadas à presença portuguesa no território».

No seu estilo característico, Severo Portela, citado no Público, exercitava a imaginação: «houvesse uma possibilidade de reconquista e Vieira seria um governador no exílio. Assim, é apenas uma espécie de príncipe no novo Macau virtual, porque o Macau como nós o conhecíamos acabou».

Seja como for, o “polvo” estava montado. Aliás, fora meticulosamente arquitectado ao longo dos derradeiros anos da administração portuguesa do território, alicerçado numa generosa política de distribuição de subsídios, cá e lá, a quem o general entendesse poder ser útil às suas futuras ambições políticas (o Palácio de Belém?).

Procurando desentranhar o «mundo de ligações» da FJA, o Público percorria o “registo biográfico” de alguns dos membros do seu conselho de curadores, incluindo os dois que haviam procedido ao registo da fundação «em Lisboa no dia 14 de Dezembro de 1999, menos de uma semana antes da transição»: Alexandra Costa Gomes e Manuel Coelho da Silva. A primeira, «que sobreviveu à mudança de Presidentes da República, primeiros-ministros e governadores na chefia da Missão de Macau em Lisboa, acumulando-a com a coordenação da Missão de Macau em Bruxelas e a participação como perita no Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês, integrou a comissão instaladora e é agora directora do Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM), criado pelo governo de Cavaco Silva. O CCCM é actualmente tutelado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, do qual Alexandra Gomes é quadro superior (...). Quanto a Coelho da Silva, a sua ligação a Macau data dos anos 80, quando exerceu o cargo de director dos Serviços de Educação e se viu envolto em polémica por ter definido os macaenses como “eunucos culturais”».

Outro curador da FJA mencionado pelo Público era «Guilherme Valente, o conhecido editor da Gradiva que foi assessor cultural de Rocha Vieira. A meio da década de 90, regressou a Portugal e foi nomeado pela administração de Macau para a representar na comissão instaladora do CCCM» (o visado reagiu de imediato a esta referência, enviando uma carta para o jornal, publicada dois dias depois. Um texto que recorria à velha e carunchosa dicotomia entre os bons portugueses – o ex-governador e os seus homens de mão – e os maus patriotas, que punham em causa o supremo interesse nacional – os críticos da FJA e de outros esquemas afins. O esforço de exacerbação do general foi, aliás, tanto que Guilherme Valente até confundiu o autor do artigo do Público – Luís Andrade de Sá – com o do Ponto Final ali evocado – Paulo Azevedo...).

De seguida, Jorge Rangel, ex-deputado e membro dos governos de Almeida e Costa e Rocha Vieira. Além de presidente do IIM, era apontado como curador da Fundação do Santo Nome de Deus de Macau, «uma instituição ligada à direita católica com sede em Lisboa».

A rematar, os curadores Celeste Hagatong e Guimarães Lobato; aquela, com «ligações familiares a um histórico presidente da Casa de Macau em Lisboa» e encabeçando o conselho fiscal da FJA, o único órgão social não ocupado por Rocha Vieira; este, «presidente do conselho de administração do Instituto de Soldadura e Qualidade de Portugal, que é accionista do instituto congénere macaense», e líder da Fundação Casa de Macau, proprietária do Pavilhão de Macau no Parque das Nações. «Nos últimos anos do seu mandato, Rocha Vieira atribuiu um subsídio de sessenta mil contos à Fundação Casa de Macau para comprar aquele pavilhão e também para aquisição de novas instalações, na Avenida Gago Coutinho, que substituíram a velha representação macaense no Príncipe Real».

Em entrevista ao Macau Hoje de 1 de Março, Jorge Rangel quebrava, finalmente, um longo silêncio e reagia à polémica em torno da FJA e do IIM. Sobre os cinquenta milhões de patacas entregues à FJA pela FCDM, justificou ser responsabilidade desta «viabilizar a cooperação e apoiar especialmente as iniciativas de organizações da sociedade civil consentâneas com os seus propósitos». No seu entendimento, o subsídio da FCDM teria sido, então, uma forma de Macau assumir a sua «quota-parte» no apoio financeiro às acções de cooperação entre instituições de Portugal e do território... Já no tocante aos dinheiros públicos por si despachados para o seu próprio instituto, legitimou-os com o pretexto de que o IIM, «como qualquer organização não governamental, sem fins lucrativos e com a classificação oficial de organismo de utilidade pública [também por si conferida...], pode e deve obter também apoios de instituições oficiais»...

Um “interessante” raciocínio, à atenção dos membros do actual Executivo de Edmund Ho que não venham a ser reconduzidos por Chui Sai On. Têm quatro meses para pensar no assunto, criar uma ONG e atribuir-lhe um generoso subsídio. Depois, já sabem...

(continua na próxima semana)

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