quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Banquetes e celebrações

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
15 de Outubro de 2009

Há pouco mais de um mês, critiquei aqui o subsídio de trezentas patacas por cabeça que a Fundação Macau decidira atribuir às associações locais para organizarem banquetes comemorativos do décimo aniversário da transferência de soberania do território (ou, mais rigorosamente, da transferência do exercício da soberania), apontando o facto de algumas candidaturas às eleições legislativas estarem, na verdade, a utilizar esse dinheiro para jantares de campanha. Se dúvidas houvesse, bastaria constatar a enorme concentração desses repastos subsidiados durante as duas semanas de campanha eleitoral...

Não faço ideia em quanto irá a medida onerar os cofres da fundação presidida por Vítor Ng. Atirando um número ao acaso, se quatrocentos mil residentes beneficiassem da medida (o que é um perfeito exagero), ela importaria em 120 milhões de patacas. É muito dinheiro, mas sempre se poderá dizer que encheu o estômago a um mar de gente por um dia, já para não falar naqueles argumentos mais discutíveis, como o pretenso contributo da iniciativa para promoção da harmonia social e do patriotismo.

Vai daí, e porque de celebrações do handover estamos a falar, resolvi pesquisar os meus arquivos e ver em quanto orçou a celebração do evento em 19 de Dezembro de 1999, quando esteve a cargo da última administração portuguesa do território: nada menos do que 244 milhões de patacas! A título comparativo, as cerimónias da transferência de Hong Kong, em Julho de 1997, haviam ficado aquém dos 150 milhões de patacas (já começo a compreender melhor a inflação de custos do certame da Primédia em Pequim, em confronto com a modéstia dos nossos vizinhos: há antecedentes difíceis de ultrapassar...).

O despesismo com a efeméride de há dez anos foi divulgado seis meses após o arrear da bandeira portuguesa, na edição de 27 de Junho de 2000 do Macau Hoje, citando «fonte governamental chinesa». Segundo aquele jornal, nomeado no Público do dia seguinte, a Direcção dos Serviços de Finanças estaria a fazer uma «investigação detalhada» dos «números muito elevados» dos gastos, admitindo passar o processo «para a responsabilidade do Comissariado Contra a Corrupção», caso se confirmassem «métodos pouco limpos no procedimento do dispêndio de verbas», que teriam incluído sessenta milhões para a construção do edifício onde decorreu a cerimónia oficial de 19 de Dezembro, setenta milhões em infra-estruturas de apoio à comunicação social, trinta milhões numa sessão cultural no dia anterior e doze milhões num banquete!

Os números foram tão impressionantes que Miguel Sousa Tavares até lhes dedicou o grosso de um artigo de opinião no Público de 30 de Junho de 2000 – intitulado, precisamente, «Um banquete em Macau» –, onde começou por recordar o convite recebido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português para vir assistir às cerimónias do handover: «o convite especificava que era extensivo a duas pessoas e compreendia viagens, quatro noites de estadia, refeições, despesas e ainda uma ajuda de custo diária (para fazer compras, presumo)».

O comentador recusou e não mais pensou no assunto – até ler os números divulgados na imprensa... Em relação ao manjar, fez, por exemplo, o seguinte reparo: «se conseguirmos imaginar, entre todos os convidados locais, os representantes de Pequim e a embaixada ida de Lisboa, o total astronómico de mil pessoas no banquete, mesmo assim chegamos ao fabuloso preço de 315 contos [ao câmbio da altura] por cabeça para um jantar – um banquete só ao alcance dos delírios do sultão do Brunei».

Depois de mais algumas notas ao seu bom estilo, rematou a crónica nestes termos: «poucas coisas, entre as coisas públicas, me parecem tão feias e tão inestéticas como a ostentação de riqueza com dinheiros alheios – os que gastam o dinheiro dos outros com uma largueza que jamais usam com o próprio dinheiro. Eu quero lá saber do fim do Império e do “momento histórico” da transição! O que eu gostaria de saber é quantos chineses de Macau comeriam com os 315 contos que cada português lá gastou num só banquete».

E pronto, não falo mais das trezentas patacas gastas com cada residente de Macau para festejar à mesa os dez anos da RAEM...

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