quinta-feira, 10 de abril de 2008

As forças externas

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
10 de Abril de 2008

No início da semana, o vice-presidente do Comité Olímpico de Macau e presidente da Associação dos Comités Olímpicos de Língua Oficial Portuguesa (ACOLOP), Manuel Silvério, declarou à Agência LUSA não excluir que a prevista passagem da chama olímpica por Macau a 3 de Maio seja perturbada «por forças externas». Anunciou, também, que os presidentes dos Comités Olímpicos de Portugal, Cabo Verde e Moçambique serão alguns dos portadores da tocha no território, ao contrário dos seus homónimos de São Tomé e Príncipe e do Brasil, que, «por dificuldades de agenda», recuaram na intenção inicial de participar no evento.
Não pude deixar de notar a circunstância de os desistentes serem originários precisamente do único membro da ACOLOP que reconhece Taiwan como país soberano (São Tomé e Príncipe) e do mais poderoso Estado daquela organização (o Brasil). Estaremos, pois, perante uma mera coincidência ou uma influência de “forças externas”?
Segunda dúvida: dado que esta é a terceira vez, em quatro semanas, que abordo criticamente os próximos jogos olímpicos, serei eu, que aqui resido há mais de treze anos, uma “força externa”? E se, por exemplo, a Associação Novo Macau Democrático ou colaboradores locais da Amnistia Internacional resolverem empreender algum protesto paralelo à passagem da tocha pelo território, serão também qualificados de “forças externas”? Isto é, quem vive em Macau tem que ser acéfalo ou pró-Governo Central, sob pena de constituir uma “força externa”? Corremos o risco de nos acontecer o mesmo que a Martin Lee quando se dirigiu ao Congresso americano a pedir apoio para o processo de democratização do sistema político de Hong Kong e foi acusado pelas forças locais pró-Pequim de ser um “cão a soldo de potências estrangeiras”? É isso? Da minha parte, se é esse o risco que corro por defender abertamente o respeito pelos direitos humanos no Tibete e na China, assumo-o sem hesitar!
Pode, até, suceder que o “risco” de “forças externas” se fazerem ouvir em Macau no dia 3 de Maio desapareça muito em breve, uma vez que, como se sabe, o Comité Olímpico Internacional está a ponderar o cancelamento do percurso internacional da chama olímpica, depois dos fortes incidentes de Londres, Paris e, agora, São Francisco. Seriam os manifestantes destas três metrópoles, todos eles, também “forças externas”? Um deles, o arcebispo sul-africano e antigo Prémio Nobel da Paz Desmond Tutu (um estrangeiro em solo americano, dirão os adeptos das teses conspirativas), numa vigília anteontem realizada junto ao City Hall da cidade da Golden Gate, apelou aos líderes mundiais: «por amor de Deus, para o bem das nossas crianças, para o bem das crianças deles [dos chineses], para o bem do belo povo do Tibete – não vão [aos jogos olímpicos]»; «digam aos vossos homónimos de Pequim que gostariam de ir, mas consultaram a vossa agenda e verificaram que tinham outros compromissos».
Não obstante este crescendo de reacções mundiais – e não apenas dos tibetanos no exílio, por muito que as autoridades chinesas continuem pateticamente a insistir –, tudo indica que irá prevalecer o entendimento de que um boicote à olimpíada teria como efeito mais relevante o prejuízo dos próprios atletas, à semelhança do que sucedeu com os boicotes alargados aos Jogos Olímpicos de Moscovo e de Los Angeles. Mas, ao mesmo tempo, a componente desportiva nunca deverá estar ao serviço do encobrimento hipócrita de realidades tão graves como a reiterada violação dos direitos humanos no interior da China ou o apoio desta a regimes párias como os da Birmânia ou do Sudão. Daí o apelo de Desmond Tutu, a ausência frontalmente assumida dos presidentes polaco e checo e da chanceler alemã, ou a “incompatibilidade de calendário” de Cavaco Silva.
Há quem persista no argumento histórico de que os inimigos da Antiguidade suspendiam as suas guerras para que os jogos olímpicos pudessem ter lugar, mas, olhando para a História recente, constatamos que nem a última Grande Guerra Mundial (1939-1945) fez uma pausa para que os homens competissem no desporto, nem estes fizeram de conta que não estavam em guerra para se enfrentarem nos recintos desportivos – e, assim, não houve olimpíadas em 1940 e 1944. Há limites para tudo...
Finalmente, leio com assombro gente culta a arrazoar entre nós que os tibetanos estão «a poluir, na actualidade, uma das mais belas manifestações da humanidade», revelando falta de «respeito pela liberdade dos outros em comemorar um encontro pacífico entre todos os homens, independentemente da sua religião, política ou filosofia, nem que seja por apenas um mês» (editorial do jornal Hoje Macau de ontem)! Mas o governo chinês respeita, por um dia que seja, as diferenças religiosas e políticas dentro das suas fronteiras? Para assinalar os “seus” jogos olímpicos, Pequim fez uma pausa na perseguição e encarceramento de dissidentes ou de simples sacerdotes católicos que não alinham com a chamada Igreja Patriótica? Fez uma pausa no genocídio cultural do Tibete? Permitiu alguma evolução no sistema político das suas regiões administrativas especiais? Pressionou o governo sudanês sobre o desastre humanitário no Darfur? Desviou os mísseis apontados a Taiwan? Nada! Mas os oprimidos, os enclausurados, os exilados, as mães de Tiananmen, esses sim, devem respeitar o ideal olímpico e sofrer em silêncio durante umas semanitas, para que a grande máquina de propaganda do regime possa funcionar no seu esplendor e mostrar ao mundo a inexorável ascensão da nova superpotência.
O primeiríssimo princípio da Carta Olímpica, a que a China também aderiu, define que, «combinando desporto com cultura e educação, o Olimpismo procura criar um modo de vida baseado no prazer do esforço, no valor educacional do bom exemplo e no respeito pelos princípios éticos universais fundamentais». Quem quer ser anfitrião dos jogos olímpicos tem, mais do que qualquer outro participante, obrigação de cumprir este princípio, dentro e fora de campo. Se Pequim não o esquecesse, o mundo saberia reconhecer o gesto.

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