Jornal Tribuna de Macau
24 de Abril de 2008
«Veneno: a arma dos cobardes»
(John Fletcher, 1579-1625)
Há muito que planeara escrever hoje sobre as eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas. Não obstante o manifesto desinteresse da maioria da nossa comunidade “expatriada” em relação ao sufrágio de domingo passado – ou talvez por isso mesmo –, julgo que este órgão é merecedor de atenção e reflexão. Ficará para uma próxima oportunidade.
Sucedeu, entretanto, que voz amiga me deu a conhecer que alguém terá enviado uma carta anónima ao governo de Macau, esbaforindo contra a minha crónica de há duas semanas, «as forças externas» (ainda disponível no sítio do JTM e no meu recém-criado blogue, em oprotesto-macau.blogspot.com). Desconheço, por ora, os termos da missiva e a reacção exacta de quem a recebeu, embora exista uma disposição legal a determinar que «as sugestões, queixas e reclamações anónimas podem ser destruídas» (n.º 2 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 5/98/M, de 2 de Fevereiro).
Espero, contudo, que o queixoso continue a ler as minhas crónicas semanais, até porque esta lhe é particularmente dedicada. Depois, poderá também destilar o seu veneno anónimo no meu blogue, uma vez que (ainda) não é requerida qualquer identificação para ali se expressar.
Este consternado leitor poderia, como qualquer outro, ter dirigido a sua indignação a este jornal, que estou certo da publicação das suas palavras, como tantas vezes já aconteceu. Não desejando expor-se publicamente, poderia, em alternativa, ter solicitado ao JTM o meu contacto e me abordar directamente. Mas não! Como um verdadeiro cobarde, preferiu dirigir-se de forma oculta ao executivo local, certamente na expectativa de que alguma represália fosse exercida sobre mim por via do meu vínculo jurídico-laboral com a administração do território, mesmo não havendo qualquer mistura entre o que escrevo na comunicação social e a minha actividade profissional e os deveres funcionais dela decorrentes.
Caricato em tudo isto é que, enquanto eu manifesto abertamente a minha postura crítica face ao poder central em matérias tão sensíveis como o Tibete, os direitos humanos no continente ou a democratização do sistema político de Macau, o biltre recorre ao anonimato até para assumir posições alinhadas com o poder! Haverá maior cobardia?
Já mais do que uma vez ouvi aqui, até de outros portugueses, comentários do género: «és um convidado nesta terra e os convidados não devem dizer mal de quem os recebe». Gostaria de esclarecer, de uma vez por todas, que não me considero, nem aceito ser considerado, um “convidado” em Macau. Sou um cidadão, um residente permanente e um eleitor deste território. Posso votar e ser eleito para o parlamento local. Com excepção do acesso a meia-dúzia de cargos, tenho os precisos direitos de qualquer cidadão chinês de Macau e julgava ter sido esse um dos grandes objectivos da diplomacia do meu país nas negociações da transferência de soberania com a China, assim como acreditava ser essa uma decorrência da Declaração Conjunta Luso-Chinesa Sobre a Questão de Macau e da Lei Básica. Além do mais, esta terra não é propriedade dos seus dirigentes, mas de todo o seu povo. Será isto tão difícil de perceber?
Aos patriotas exacerbados e aos oportunisticamente patriotas gostaria, também, de clarificar que não sou anti-China ou anti-chinês. Nem eu nem, estou em crer, a maioria daqueles cidadãos do mundo que têm protestado à passagem da tocha olímpica pelas suas cidades. Somos é pelo respeito incondicional desse conjunto de valores supra-nacionais a que se convencionou chamar direitos humanos. Para nós, a nação chinesa não se resume ao regime totalitário a que continua agrilhoada ou à sua nomenklatura. Por isso é que, nos quatro cantos do mundo, estivemos ao lado dos estudantes de Tiananmen em 1989 e chorámos de raiva e impotência quando os tanques avançaram sobre eles. E por isso é que rejubilamos sempre que testemunhamos eleições livres em Taiwan, porque nos fazem acreditar que o povo chinês consegue viver em liberdade e democracia, ao contrário do que alguns teimosamente asseveram.
O seguidismo cego, a cultura do “trabalha e cala”, a sabujice do poder, tão típicos entre nós, são um cancro social, o cancro que potencia o aparecimento dos Ao Man Long deste pequeno burgo e tantos actos polémicos e suspeitos de gestão da coisa pública que têm vindo a terreiro nos últimos tempos.
Não fora a determinação de um pequeno grupo de cidadãos desinteressados e alguma vez o executivo teria fixado os recentes limites à construção em altura para proteger o Farol da Guia (ainda que a medida peque por tardia e insuficiente)? Claro que não! Ou já nos esquecemos daquela famosa frase de que o progresso de Macau não podia ser travado por “romantismos”? Como este, há tantos outros exemplos. Tantos que não percebo porque é que temos que andar sempre a avivar a memória das pessoas, especialmente a dos nossos queridos líderes e seus patrióticos servidores.
Acreditem ou não, nem todos nos orientamos com intuitos mercenários ou de projecção pública, da mesma maneira que nem todos pensamos que a economia justifica tudo ou é incompatível com a democracia e a liberdade, que o nosso emprego é mais importante do que os nossos princípios ou que os nossos dirigentes são incontestáveis e infalíveis. Infalível, só Deus. Cá em baixo, alguns de nós ainda vivemos na doce convicção de que podemos e devemos contribuir para um mundo melhor. Quanto aos cobardes, deles não reza a história.
(John Fletcher, 1579-1625)
Há muito que planeara escrever hoje sobre as eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas. Não obstante o manifesto desinteresse da maioria da nossa comunidade “expatriada” em relação ao sufrágio de domingo passado – ou talvez por isso mesmo –, julgo que este órgão é merecedor de atenção e reflexão. Ficará para uma próxima oportunidade.
Sucedeu, entretanto, que voz amiga me deu a conhecer que alguém terá enviado uma carta anónima ao governo de Macau, esbaforindo contra a minha crónica de há duas semanas, «as forças externas» (ainda disponível no sítio do JTM e no meu recém-criado blogue, em oprotesto-macau.blogspot.com). Desconheço, por ora, os termos da missiva e a reacção exacta de quem a recebeu, embora exista uma disposição legal a determinar que «as sugestões, queixas e reclamações anónimas podem ser destruídas» (n.º 2 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 5/98/M, de 2 de Fevereiro).
Espero, contudo, que o queixoso continue a ler as minhas crónicas semanais, até porque esta lhe é particularmente dedicada. Depois, poderá também destilar o seu veneno anónimo no meu blogue, uma vez que (ainda) não é requerida qualquer identificação para ali se expressar.
Este consternado leitor poderia, como qualquer outro, ter dirigido a sua indignação a este jornal, que estou certo da publicação das suas palavras, como tantas vezes já aconteceu. Não desejando expor-se publicamente, poderia, em alternativa, ter solicitado ao JTM o meu contacto e me abordar directamente. Mas não! Como um verdadeiro cobarde, preferiu dirigir-se de forma oculta ao executivo local, certamente na expectativa de que alguma represália fosse exercida sobre mim por via do meu vínculo jurídico-laboral com a administração do território, mesmo não havendo qualquer mistura entre o que escrevo na comunicação social e a minha actividade profissional e os deveres funcionais dela decorrentes.
Caricato em tudo isto é que, enquanto eu manifesto abertamente a minha postura crítica face ao poder central em matérias tão sensíveis como o Tibete, os direitos humanos no continente ou a democratização do sistema político de Macau, o biltre recorre ao anonimato até para assumir posições alinhadas com o poder! Haverá maior cobardia?
Já mais do que uma vez ouvi aqui, até de outros portugueses, comentários do género: «és um convidado nesta terra e os convidados não devem dizer mal de quem os recebe». Gostaria de esclarecer, de uma vez por todas, que não me considero, nem aceito ser considerado, um “convidado” em Macau. Sou um cidadão, um residente permanente e um eleitor deste território. Posso votar e ser eleito para o parlamento local. Com excepção do acesso a meia-dúzia de cargos, tenho os precisos direitos de qualquer cidadão chinês de Macau e julgava ter sido esse um dos grandes objectivos da diplomacia do meu país nas negociações da transferência de soberania com a China, assim como acreditava ser essa uma decorrência da Declaração Conjunta Luso-Chinesa Sobre a Questão de Macau e da Lei Básica. Além do mais, esta terra não é propriedade dos seus dirigentes, mas de todo o seu povo. Será isto tão difícil de perceber?
Aos patriotas exacerbados e aos oportunisticamente patriotas gostaria, também, de clarificar que não sou anti-China ou anti-chinês. Nem eu nem, estou em crer, a maioria daqueles cidadãos do mundo que têm protestado à passagem da tocha olímpica pelas suas cidades. Somos é pelo respeito incondicional desse conjunto de valores supra-nacionais a que se convencionou chamar direitos humanos. Para nós, a nação chinesa não se resume ao regime totalitário a que continua agrilhoada ou à sua nomenklatura. Por isso é que, nos quatro cantos do mundo, estivemos ao lado dos estudantes de Tiananmen em 1989 e chorámos de raiva e impotência quando os tanques avançaram sobre eles. E por isso é que rejubilamos sempre que testemunhamos eleições livres em Taiwan, porque nos fazem acreditar que o povo chinês consegue viver em liberdade e democracia, ao contrário do que alguns teimosamente asseveram.
O seguidismo cego, a cultura do “trabalha e cala”, a sabujice do poder, tão típicos entre nós, são um cancro social, o cancro que potencia o aparecimento dos Ao Man Long deste pequeno burgo e tantos actos polémicos e suspeitos de gestão da coisa pública que têm vindo a terreiro nos últimos tempos.
Não fora a determinação de um pequeno grupo de cidadãos desinteressados e alguma vez o executivo teria fixado os recentes limites à construção em altura para proteger o Farol da Guia (ainda que a medida peque por tardia e insuficiente)? Claro que não! Ou já nos esquecemos daquela famosa frase de que o progresso de Macau não podia ser travado por “romantismos”? Como este, há tantos outros exemplos. Tantos que não percebo porque é que temos que andar sempre a avivar a memória das pessoas, especialmente a dos nossos queridos líderes e seus patrióticos servidores.
Acreditem ou não, nem todos nos orientamos com intuitos mercenários ou de projecção pública, da mesma maneira que nem todos pensamos que a economia justifica tudo ou é incompatível com a democracia e a liberdade, que o nosso emprego é mais importante do que os nossos princípios ou que os nossos dirigentes são incontestáveis e infalíveis. Infalível, só Deus. Cá em baixo, alguns de nós ainda vivemos na doce convicção de que podemos e devemos contribuir para um mundo melhor. Quanto aos cobardes, deles não reza a história.
4 comentários:
Sem mais comentários. Subscrevo na íntegra. Que cobardia! Força Nuno, e obrigado!
Obrigado, Fredy!
Um abraço.
O google é que é democrático. Os Links dos seus textos apareceram no meu email por subscrever a palavra Macau.
Concordo inteiramente com o que escreveu e dou-lhe os meus parabéns.
Tudo o que seja verdade e humano acabará por emergir.
Muito obrigado!
Macau é uma terra muito pequena e ainda padece de uma enorme falta de cultura democrática. Por isso, quando se dá a cara, há sempre um enorme risco de acontecerem coisas destas (e outras piores).
Cumprimentos.
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