Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
3 de Abril de 2008
Na passada segunda-feira, dia 31 de Março, assinalaram-se os quinze anos da promulgação da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau pelo então Presidente da República Popular da China, Jiang Zemin. Uma vez mais, o famigerado artigo 23.º da “mini-constituição” do território veio à baila. Entre outras vozes, um professor da Academia de Ciências Sociais da Faculdade de Direito de Xangai, Huang Lai Ji, terá qualificado de «falha legal séria (...) a não regulamentação» daquele normativo, segundo declarações ao jornal Ou Mun, reproduzidas no Hoje Macau de ontem.
Fazendo uma retrospectiva da questão, é de notar que os crimes previstos na primeira parte do artigo 23.º da Lei Básica – traição à pátria, secessão, sedição, subversão e subtracção de segredos de Estado – tiveram previsão legal em Macau até à transferência de soberania, através do Código Penal de 1886, onde se encontravam integrados no Título II do Livro Segundo, «Dos crimes contra a segurança do Estado». O Decreto-Lei n.º 58/95/M, de 14 de Novembro, que aprovou o actual Código Penal do território e determinou a sua entrada em vigor a partir de 1 de Janeiro de 1996, manteve a vigência daquele segmento do vetusto código até 19 de Dezembro de 1999, precisamente porque essa matéria não era tratada no novo articulado e Portugal não a quis deixar a “descoberto” enquanto exercesse a soberania sobre Macau. Por outras palavras, o legislador português não quis que, num espaço ainda sob a sua bandeira, condutas tão graves ficassem descriminalizadas; ainda para mais, num período tão sensível como os últimos anos da transição.
Em alternativa a este deixar “arrastar” de um conjunto de normas com mais de cem anos de existência, muitas das quais redigidas numa terminologia já completamente desajustada da realidade contemporânea, foi ponderada a elaboração de um diploma avulso com recurso à fórmula “crimes contra a segurança do Estado responsável pelas relações externas de Macau”, que permitiria a sua aplicação sem sobressaltos antes e depois do handover. No entanto, a intenção não terá merecido receptividade da parte chinesa no Grupo de Ligação Conjunto, à semelhança do que sucedera, aliás, em Hong Kong na fase final da administração britânica. Certamente a pensar já na regulamentação do artigo 23.º da Lei Básica pelo futuro legislador local pró-Pequim, a China terá entendido que a criação de um novo quadro normativo de matriz portuguesa, ou sequer a manutenção do antigo, neste âmbito poderia funcionar com uma (indesejável) condicionante do teor da futura legislação. Por aqui se compreende que, se o ordenamento jurídico da RAEM apresenta esta «falha legal séria», a China, com a sua agenda própria e consequente inflexibilidade negocial antes do handover, deve olhar, antes de mais, para si própria quando procura apurar responsabilidades.
Como referi atrás, o mesmo problema ocorreu em Hong Kong, embora com incomparável dimensão mediática, face ao braço-de-ferro que a Administração Patten travou com a parte chinesa antes de Julho de 1997: dois anos antes da transferência de soberania do território vizinho, os ingleses submeteram à contraparte chinesa uma proposta de emenda da Crimes Ordinance, envolvendo alguns dos crimes previstos no artigo 23.º. A China recusou sistematicamente todas as propostas que lhe foram apresentadas, com a justificação de que deveria ser a futura região administrativa especial a produzir essa legislação. Chris Patten manteve a sua obstinação e acabou por enviar ao Legislative Council (LEGCO) um projecto que, no essencial, adicionava à Crimes Ordinance os crimes de secessão e subversão (ambos implicando um elemento de violência na tipologia legal, o que merecia a total oposição do lado chinês), bem como redefinia os crimes de traição e sedição para reflectir adequadamente o legado da common law neste tocante. Para os ingleses, estas alterações eram consistentes com a sua Bill of Rights, a Declaração Conjunta, a Lei Básica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, fornecendo «uma sólida fundação a partir da qual a RAEHK terá condições para cumprir as suas obrigações resultantes do artigo 23.º da Lei Básica», segundo invocava uma nota de imprensa do Governo de Hong Kong de Novembro de 1996. O projecto passou, mas, curiosamente, o LEGCO, na sua última sessão antes do handover, acabaria por eliminar os dois novos crimes da Crimes Ordinance, devido ao receio de que a nova liderança sínica da RAEHK a eles recorresse abusivamente. Na altura, Emily Lau chegou a declarar que, com essa decisão, o LEGCO enviava «uma mensagem pública de que este tipo de crimes só são usados contra inimigos políticos e não devem existir nem existirão em Hong Kong».
Perante este contexto histórico ainda bem fresco e o mau registo da China em matéria de direitos humanos – direitos políticos, em particular –, qualquer anúncio de que a regulamentação do artigo 23.º vai avançar não pode deixar de constituir factor de preocupação. E, diferentemente do que parece sustentar Huang Lai Ji, a questão não pode ser vista essencialmente na perspectiva da lacuna legal. Bem pelo contrário: esse é o mal menor...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário