quinta-feira, 17 de abril de 2008

A China e o mal do mundo


7 de Abril de 2008

Se tivesse vinte anos, eu (que nunca, nem sequer ao de leve, simpatizei com o maoísmo, pelo que não tenho questões psicanalíticas por resolver nesse particular capítulo) andaria certamente a manifestar-me em frente à embaixada da China, e a pedir o boicote aos Jogos Olímpicos. Quando ouvi o presidente do Comité Olímpico Português dizer, tranquilamente, que desporto é desporto e que não temos nada que interferir nos "assuntos internos de outros países", os vinte e cinco anos que os meus vinte anos já levam em cima apagaram-se e uma fúria humana, demasiado humana, ferveu-me no sangue. As aspas de que não consigo abdicar quando oiço o manifesto de indiferença à dor das outras pessoas que se sintetiza na expressão "assuntos internos de outros países" demonstram-me que algo dos meus vinte anos ainda sobrevive. Mas depois começo a pensar, e envelheço. Porque sei que o boicote não resolveria nada - e causaria até um fechamento maior do Império Chinês, e um maior sofrimento àqueles que vivem encarcerados e torturados por ele.
O terror existente na China não começa nem acaba na questão do reconhecimento do Tibete. É um terror silencioso, o terror dos cadáveres dos milhares de chineses presos, torturados e mortos em luta pelas liberdades mais básicas. A China vende ao Sudão as armas que são utilizadas para massacrar a população de Darfur. Porque é que se escolheu este país como anfitrião dos Jogos Olímpicos? O Canadá, que perdeu para a China, não seria muito mais exemplar no que se refere à promoção da paz e da concórdia entre os povos - a nobre intenção que motivou o Barão de Coubertin, fundador das Olimpíadas da Era Moderna? Sim, mas os países bons não são os países líderes. A História da Humanidade tem consistido no desenho sucessivo, e aparentemente inconsciente, de gigantes que se tornam monstros. Quando o poder do monstro é tentacular, os seus criadores tentam seduzi-lo, com falinhas mansas, para que ele os deixe sobreviver. O mundo depende da China, porque a economia dos Estados Unidos da América depende da China. Por isso é que a ausência de direitos humanos na China incomoda menos do que em Cuba. Cuba é pequena, pode ser embargada. Os bodes-expiatórios são sempre os pequeninos. O mundo funcionou sempre com as regras implacáveis utilizadas pelas crianças da escola primária. Terrivelmente simples e impiedosas. Por isso é que é tão difícil converter as crianças à bondade e à justiça. Não só não é isso que existe, como o excessivo zelo justiceiro pode criar injustiças ainda maiores - eis o que, aos vinte anos, felizmente, eu não sabia, nem queria saber.
Seria desejável que estes Jogos Olímpicos se tornassem embaraçosos. O Governo chinês já pondera fazer a transmissão do evento em diferido, temendo os imprevistos. Por isso mesmo, seria bom que os imprevistos fossem arquitectados em conjunto. Seria simpático que todos os atletas da União Europeia surgissem com uma marca de discórdia no corpo - uma faixa num braço, um sinal. Seria um acto de coragem, um gesto de solidariedade. As pequenas coisas podem mudar as grandes - penso assim para não desistir dos meus vinte anos, penso assim porque, apesar de tudo e ao contrário do que oiço dizer, tenho visto o mundo melhorar muito, desde os meus vinte anos. Quando a Indonésia ocupava Timor, Portugal chegou a fazer campanhas de televisão apelando ao boicote dos produtos "made in Indonésia". Conseguimos a independência de Timor - que Timor esfrangalha agora, suicidando-se. Mas outra coisa que a idade nos ensina (e que Angola e Moçambique também já nos ensinaram) é que não podemos obrigar os outros a serem felizes.
Não há só estes exemplos dolorosos: há também, e só para continuar a falar de realidades que nos são mais próximas, a força gloriosa do Brasil, uma promessa solar de superpotência. Os pequenos gestos, multiplicados, tornam-se grandes: o gesto de não comprar objectos produzidos por trabalho escravo, ou semi-escravo, é um deles. O gesto de sinalizar o desgosto face à ditadura de Pequim é outro. Quer queiram ou não, os atletas são também políticos. Toda a intervenção humana na sociedade é política. A separação entre "a política" e "o resto" é uma forma específica de acção política, própria daqueles que só tratam dos seus interesses. A extrema-direita sempre utilizou esta distinção - da mesma maneira que o Partido Comunista Português, lestíssimo a separar por etiquetas os bons e os maus massacres, os bons e os maus ditadores: observe-se o que Jerónimo de Sousa continua a dizer sobre Cuba, a Coreia do Norte ou a acção das FARC, na Colômbia, para além do beneplácito eterno à China, no que está agora bem acompanhado por George Bush.
Não se pode abrir guerra à China - mas pode, pelo menos, arreganhar-se-lhe os dentes. E começar a desenhar um monstro alternativo, com um bocadinho mais de moral.

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