21 de Novembro de 2008
«Sedição – Talvez a mais vaga de todas as ofensas conhecidas da lei penal (...). Uma acusação de sedição tem sido, historicamente, um dos principais meios usados pelos Governos para abater as críticas hostis, em particular nos finais do século XVIII e princípios do século XIX. É evidente que a imprecisão da acusação é um perigo para a liberdade individual, especialmente se os tribunais puderem ser induzidos a assumir uma perspectiva favorável ao Governo.»
(Edward Jenks, The Book of English Law, 1967)
O projecto de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado» apresentado pelo Governo prevê a punição dos actos de sedição com uma pena de um a oito anos de cadeia. E o que é a sedição para este diploma? É incitar «pública e directamente» à prática de actos de traição à Pátria, de secessão do Estado ou de subversão contra o Governo Popular Central. E é, também, «pública e directamente, incitar os agentes da Guarnição em Macau do Exército de Libertação do Povo Chinês para o abandono de funções ou para a prática de actos de rebelião» (em suma, se alguém instigar um destes soldados libertadores a se “libertar” a si próprio, pode perder a liberdade...).
Se o advérbio «pública(mente)» parece querer salvaguardar a liberdade de pensamento e o advérbio «directamente» a liberdade de expressão (prevista no artigo 27.º da Lei Básica), já a articulação da criminalização destes comportamentos com a dos actos preparatórios pode vir a revelar-se uma verdadeira armadilha legal para os livres pensadores e os críticos do regime que impera do lado de lá da fronteira.
Afinal, não se exige aqui o uso da violência ou de «outros meios ilícitos graves»; apenas uma instigação pública e directa. E não são os actos preparatórios, tão simplesmente, «aqueles que preordenam o crime sem iniciar a execução», segundo a poupada descrição do documento de consulta elaborado pelo Governo? É que, se houvesse algum acto de execução, estaríamos já no domínio da tentativa, «punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada» (artigo 22.º do Código Penal). Não sendo os actos preparatórios, em regra, puníveis (artigo 20.º do Código Penal), a não execução de actos típicos da prática de um crime (apontar uma arma carregada a alguém, para dar um exemplo muito simples) costuma ser uma boa válvula de segurança para a não punição de atitudes normalmente inócuas (ter uma arma legal guardada num cofre, por exemplo).
Mas o problema é que a iniciativa legislativa que está em cima da mesa pune os meros actos preparatórios; aqueles que, no iter criminis (no percurso do crime), já ultrapassaram a mera vontade de cometer o ilícito penal e se consubstanciaram no que o julgador vai ter que avaliar como uma conduta de “preparação do terreno”, com vista à futura execução do crime.
E aqui começam todas as dificuldades. Imagine-se o nosso conhecido Lee Kin Yun, da Associação de Activismo para a Democracia: é verdade que é um jovem um bocado desbocado e tem o mau hábito de se deitar a meio da rua nas campanhas eleitorais, bloqueando um trânsito já de si suficientemente arreliador, mas será isso razão suficiente para que, um dia, alguma autoridade local mais papista do que o Papa (daquelas que gostam de mostrar serviço a Pequim, se é que me faço entender) o leve à barra do tribunal e consiga que um qualquer magistrado inexperiente e pressionado pelo «amor à Pátria e amor a Macau, de corpo e alma», e ciente de que «o espírito deste amor se transformou numa força motriz para a construção e o desenvolvimento da Região» (nas palavras introdutórias do documento de consulta do projecto de lei), o mande encarcerar no Estabelecimento Prisional de Coloane por um período até três anos, por, supostamente, estar a preparar actos de sedição? Ou até oito anos, por, no livre arbítrio do julgador, ter cometido já esses actos? Creio que não! Apesar dos excessos do rapaz, prefiro viver numa sociedade com idealistas como ele, que dão tudo de si na busca incessante de um mundo melhor. E como respeito a coragem desprendida de quem o faz!
Em teoria, criminalizam-se condutas para proteger a sociedade. Mas há medidas legislativas de criminalização que são, em si, mais nefastas para essa sociedade do que o ínfimo risco de alguma vez o suposto vazio legal ser aproveitado para a prática de um crime relevante. Esta «proibição de actos de sedição» que o Governo quer introduzir no ordenamento jurídico de Macau será, muito provavelmente, um desses casos. É que, se a nova previsão legal do crime de subtracção de segredos de Estado é susceptível de induzir a classe jornalística à autocensura, a do crime de sedição tem potencial para lançar o mesmo anátema entre as vozes dissonantes do sistema – não num qualquer distante e hipotético momento, mas já amanhã, quando a lei entrar em vigor, e em cada longo dia da sua indecorosa existência.
(Edward Jenks, The Book of English Law, 1967)
O projecto de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado» apresentado pelo Governo prevê a punição dos actos de sedição com uma pena de um a oito anos de cadeia. E o que é a sedição para este diploma? É incitar «pública e directamente» à prática de actos de traição à Pátria, de secessão do Estado ou de subversão contra o Governo Popular Central. E é, também, «pública e directamente, incitar os agentes da Guarnição em Macau do Exército de Libertação do Povo Chinês para o abandono de funções ou para a prática de actos de rebelião» (em suma, se alguém instigar um destes soldados libertadores a se “libertar” a si próprio, pode perder a liberdade...).
Se o advérbio «pública(mente)» parece querer salvaguardar a liberdade de pensamento e o advérbio «directamente» a liberdade de expressão (prevista no artigo 27.º da Lei Básica), já a articulação da criminalização destes comportamentos com a dos actos preparatórios pode vir a revelar-se uma verdadeira armadilha legal para os livres pensadores e os críticos do regime que impera do lado de lá da fronteira.
Afinal, não se exige aqui o uso da violência ou de «outros meios ilícitos graves»; apenas uma instigação pública e directa. E não são os actos preparatórios, tão simplesmente, «aqueles que preordenam o crime sem iniciar a execução», segundo a poupada descrição do documento de consulta elaborado pelo Governo? É que, se houvesse algum acto de execução, estaríamos já no domínio da tentativa, «punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada» (artigo 22.º do Código Penal). Não sendo os actos preparatórios, em regra, puníveis (artigo 20.º do Código Penal), a não execução de actos típicos da prática de um crime (apontar uma arma carregada a alguém, para dar um exemplo muito simples) costuma ser uma boa válvula de segurança para a não punição de atitudes normalmente inócuas (ter uma arma legal guardada num cofre, por exemplo).
Mas o problema é que a iniciativa legislativa que está em cima da mesa pune os meros actos preparatórios; aqueles que, no iter criminis (no percurso do crime), já ultrapassaram a mera vontade de cometer o ilícito penal e se consubstanciaram no que o julgador vai ter que avaliar como uma conduta de “preparação do terreno”, com vista à futura execução do crime.
E aqui começam todas as dificuldades. Imagine-se o nosso conhecido Lee Kin Yun, da Associação de Activismo para a Democracia: é verdade que é um jovem um bocado desbocado e tem o mau hábito de se deitar a meio da rua nas campanhas eleitorais, bloqueando um trânsito já de si suficientemente arreliador, mas será isso razão suficiente para que, um dia, alguma autoridade local mais papista do que o Papa (daquelas que gostam de mostrar serviço a Pequim, se é que me faço entender) o leve à barra do tribunal e consiga que um qualquer magistrado inexperiente e pressionado pelo «amor à Pátria e amor a Macau, de corpo e alma», e ciente de que «o espírito deste amor se transformou numa força motriz para a construção e o desenvolvimento da Região» (nas palavras introdutórias do documento de consulta do projecto de lei), o mande encarcerar no Estabelecimento Prisional de Coloane por um período até três anos, por, supostamente, estar a preparar actos de sedição? Ou até oito anos, por, no livre arbítrio do julgador, ter cometido já esses actos? Creio que não! Apesar dos excessos do rapaz, prefiro viver numa sociedade com idealistas como ele, que dão tudo de si na busca incessante de um mundo melhor. E como respeito a coragem desprendida de quem o faz!
Em teoria, criminalizam-se condutas para proteger a sociedade. Mas há medidas legislativas de criminalização que são, em si, mais nefastas para essa sociedade do que o ínfimo risco de alguma vez o suposto vazio legal ser aproveitado para a prática de um crime relevante. Esta «proibição de actos de sedição» que o Governo quer introduzir no ordenamento jurídico de Macau será, muito provavelmente, um desses casos. É que, se a nova previsão legal do crime de subtracção de segredos de Estado é susceptível de induzir a classe jornalística à autocensura, a do crime de sedição tem potencial para lançar o mesmo anátema entre as vozes dissonantes do sistema – não num qualquer distante e hipotético momento, mas já amanhã, quando a lei entrar em vigor, e em cada longo dia da sua indecorosa existência.
Nota: agradeço as referências a esta crónica no blogue Artigo 23 - Hoje Macau e na rubrica «Leituras» desta semana do Bairro do Oriente. A crónica também se encontra disponível em formato pdf na página da Internet que o Governo de Macau criou para apresentação e consulta do projecto de lei (podendo ser descarregada directamente aqui).
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