Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
28 de Novembro de 2008
Se a política de Macau fosse um jogo de basquetebol, eu recomendaria às equipas que pedissem um desconto de tempo ao árbitro e parassem para reflectir um pouco sobre as suas tácticas. É que este jogo aparenta estar a entrar numa fase de completo desnorte.
Primeiro, foram os crachás de identificação da proveniência dos trabalhadores dos casinos, a fazer lembrar uma das páginas mais negras da história da humanidade. O argumento era a necessidade de se encontrar uma forma expedita de detectar trabalhadores ilegais, mas, no dia-a-dia, a medida acaba por conduzir a uma distinção entre cidadãos de primeira e de segunda – exactamente o oposto da sociedade “harmoniosa” que a nossa classe política diz querer construir.
Depois, vieram os dislates de alguns parlamentares no debate das Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2009, a começar pelo ataque aos operadores do direito de língua portuguesa: são os tribunais entupidos com um sem-fim de processos judiciais por causa dos dois terços de advogados lusos, é a associação do sector que fecha as portas aos licenciados da Universidade de Ciência e Tecnologia, é o direito de matriz portuguesa (e, por arrastamento, continental europeia) que, afinal, não presta. Não é que eu considere existirem assuntos tabu ou sustente a infalibilidade do nosso legado nesta área. O que me incomoda é a forma populista e xenófoba como gente de tamanha responsabilidade, que devia transmitir um bom exemplo para os seus concidadãos, debate matérias nucleares da estruturação e funcionamento de uma sociedade. Não há um estudo criterioso dos factos, dos problemas e das soluções possíveis; apenas o velho recurso à mesma “carta na manga” de sempre: lá está a pesada herança colonialista a impedir o progresso do território! Usasse um inquilino de São Bento metade desta verborreia e tinha a embaixada da China em Lisboa à perna...
Mas a procissão ia ainda no adro: quando se pensava que o nível de tolice entre os tribunos dos Lagos Nam Van já não poderia subir muito mais, eis que os democratas conseguem furar a escala, incentivando a delação entre colegas de trabalho e propondo a instituição de prémios para os delatores. Que desilusão! Conseguiram ser ainda mais infelizes do que o Comissariado Contra a Corrupção quando, há uns anos, andou a promover as mesmas condutas no seio da Administração Pública, mas, tanto quanto me lembre, sem nunca ter chegado a aventar compensações para o efeito.
Contudo, não se quedou por aqui o triste descambar da apreciação das LAG, uma vez que também o Secretário para a Segurança resolveu emprestar o seu relevante contributo para o descalabro colectivo. E foi assim que ficámos a saber que também existem, tendencialmente, polícias de primeira e de segunda, mais a mais, não em função do seu mérito, mas da respectiva proveniência geográfica. Imagino o ambiente nas esquadras depois desse inusitado comentário... Será que também vão impor aos agentes da autoridade a exibição de crachás identificadores da sua origem? Os senhores deputados podiam, talvez, dar o exemplo e começar por fazer o mesmo, até porque dez dos 22 eleitos directa e indirectamente não são naturais do território, segundo li ontem no Jornal Tribuna de Macau.
Last but not least, o director da Polícia Judiciária deu também a sua pincelada nesta tragicomédia e, queixando-se da falta de meios técnicos e legais para eficazmente combater a criminalidade informática na sua área de jurisdição, entendeu por bem invocar o bom exemplo do organismo nacional responsável pela já famosa “Great Firewall of China”. Eu bem que fiquei preocupado quando um determinado anteprojecto me passou pelas mãos há uns tempos (e não, não estou sequer a falar ainda da regulamentação do artigo 23.º)...
E é neste contexto que andamos a apreciar, no incompreensivelmente estreito prazo de quarenta dias, o projecto de «Lei relativa à defesa da segurança do Estado». Vejam-se as palavras-chave dos parágrafos anteriores: xenofobia, denúncias, ataque ao nosso património jurídico, vigilância reforçada, censura. Mas não há razões para preocupação e o futuro diploma nunca irá, provavelmente, ser aplicado – ainda anteontem o ouvi da boca de um jurista português que muito prezo, no debate organizado pelo Hoje Macau. Curiosamente, no mesmíssimo dia em que três outros juristas portugueses aqui radicados há longa data, e todos eles em lugares de relevo, me desabafaram não acreditar no futuro do segundo sistema...
Não quero ser tão pessimista, mas o navio está a ser torpedeado e a começar a meter água em várias frentes. Ainda por cima, a maioria dos passageiros parece continuar a julgar que não é nada com ela. Ou, então, prefere, comodamente (para não usar uma palavra feia), que sejam os outros, sempre os outros, a pegar nos baldes e tentar tirar a água do convés – esquecendo-se, porventura, de que, quando o barco afundar, afunda para todos...
Nota: agradeço ao Bairro do Oriente (a festejar um ano de vida - muitos parabéns!) a inclusão desta crónica na sua rubrica «Leituras» da semana.
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