6 de Novembro de 2008
Hollywood profetizara-o já em filmes como «Deep Impact», de 1998, ou na conceituada série televisiva «24», ainda no ar, onde o presidente dos Estados Unidos da América (EUA) era interpretado por Morgan Freeman e Dennis Haysbert, respectivamente, mas foi preciso esperar 232 anos desde a declaração da independência (em 1776) e 143 anos desde a abolição da escravatura (em 1865, com a aprovação da 13.ª Emenda Constitucional) para o país eleger, finalmente, um afro-americano para o seu mais alto posto. Foram, também, precisos quarenta anos desde a morte de Martin Luther King (em Abril de 1968) para que tal acontecesse.
O discurso de vitória de Barack Obama, em Grant Park, Chicago, tocou-me. Não era um daqueles momentos de campanha ao estilo do nosso actual Primeiro-Ministro quando alcançou a maioria absoluta, mas a intervenção de um estadista e um homem com o dom da palavra. Falou do sonho dos fundadores da nação e do poder da democracia americana, que tem inspirado o mundo, não pela força das suas armas ou da sua riqueza, mas pelo poder dos seus ideais: «democracia, liberdade, oportunidade e esperança. É este o génio da América».
E não foi assim que caiu o Muro de Berlim, que foi rasgada a Cortina de Ferro e que tombaram como um baralho de cartas os regimes-satélite de Moscovo na Europa de Leste a partir de 1989? Sem um tiro, pela força dos ideais e do fascínio que o mundo livre exercia sobre povos amordaçados durante décadas? E teria sido isso possível sem o farol americano? Sem ele, talvez nos tivéssemos ficado por novas Primaveras de Praga, sucessivamente esmagadas pelo aparato militar vermelho.
Confesso que aquela forma de fazer política e campanha à americana, com muito espectáculo e entradas em palco da família inteira, até dos bebés ao colo (como fez Sarah Palin), não me seduz. Mas até nisso Obama foi sempre mais sóbrio do que os seus adversários. Mesmo no momento da retumbante vitória, soube manter a sobriedade no elogio ao adversário derrotado e no apelo a todos os seus compatriotas para se unirem à sua volta nos sacrifícios e esforços em perspectiva. Lembrou-me as famosas palavras de JFK na sua tomada de posse, em Janeiro de 1961: «ask not what your country can do for you; ask what you can do for your country» («não pergunteis o que pode o vosso país fazer por vós, mas o que podeis fazer vós pelo vosso país»).
Também as reacções populares, um pouco por todo o mundo, a este histórico momento me fizeram recordar JFK, quando, em plena Berlim Ocidental recém-cercada pelo vergonhoso muro (Junho de 1963, poucos meses antes de ser assassinado), afirmou: «ich bin ein Berliner» («sou um berlinense»). Julgo que, hoje, muito de nós se sentem um pouco americanos, animados pela esperança de que o novo presidente ajude o nosso mundo, o cantinho de cada um de nós, a ser melhor.
Não é menos verdade que, durante esta longa maratona eleitoral de muitos meses, vi e ouvi coisas que me perturbaram. A campanha republicana resvalou não poucas vezes para a quase infâmia. Na fase final, John McCain ainda tentou corrigir os excessos verbais de membros do seu staff e de muitos apoiantes nos comícios, mas o estrago estava já feito. A ponto de Colin Powell, que fora Secretário de Estado de George W. Bush entre 2001 e 2005, vir a terreiro manifestar indignação e declarar o apoio ao candidato democrata. Na circunstância, acusou elementos republicanos de chamarem pública e reiteradamente «perigoso muçulmano» a Obama, sendo este cristão. Mas foi mais longe, perguntando: «e se ele fosse muçulmano, qual era o problema? Não é isto a América?». É, é a América, um país de dimensão continental, atravessado por vários fusos horários, onde o grosso dos estados sulistas e do centro (a “América profunda”) votou McCain, em larga medida condicionados pelo estigma racial. A maior afluência às urnas em cem anos (cerca de 66%) pode ter mostrado que a nação ansiava sofregamente por uma mudança radical, mas as divisões estão lá e não vai ser fácil unir este povo de mais de trezentos milhões de almas à volta do seu novo líder.
De igual modo, Barack Obama vai enfrentar grandes desafios na cena internacional. Se Hugo Chávez e Fidel Castro já o elogiaram, o titular do Kremlin, Dmitri Medvedev, pelo contrário, reagiu friamente à sua indigitação, criticando os EUA de forma extemporânea. O urso branco continua a querer recuperar velhos sonhos imperiais... E as relações com o Irão, a Coreia do Norte, o Zimbabué, o Sudão, “até” com a China?
Os desafios internos e externos são quase dantescos, é verdade. Mas, como escrevi no meu blogue mal se confirmou a sorte eleitoral, o sonho comanda a vida e os americanos e o mundo têm agora uma nova razão para sonhar com um futuro melhor. O peso sobre os ombros de Obama é enorme, mas, como dizia o mote da sua campanha, yes, we can!
O discurso de vitória de Barack Obama, em Grant Park, Chicago, tocou-me. Não era um daqueles momentos de campanha ao estilo do nosso actual Primeiro-Ministro quando alcançou a maioria absoluta, mas a intervenção de um estadista e um homem com o dom da palavra. Falou do sonho dos fundadores da nação e do poder da democracia americana, que tem inspirado o mundo, não pela força das suas armas ou da sua riqueza, mas pelo poder dos seus ideais: «democracia, liberdade, oportunidade e esperança. É este o génio da América».
E não foi assim que caiu o Muro de Berlim, que foi rasgada a Cortina de Ferro e que tombaram como um baralho de cartas os regimes-satélite de Moscovo na Europa de Leste a partir de 1989? Sem um tiro, pela força dos ideais e do fascínio que o mundo livre exercia sobre povos amordaçados durante décadas? E teria sido isso possível sem o farol americano? Sem ele, talvez nos tivéssemos ficado por novas Primaveras de Praga, sucessivamente esmagadas pelo aparato militar vermelho.
Confesso que aquela forma de fazer política e campanha à americana, com muito espectáculo e entradas em palco da família inteira, até dos bebés ao colo (como fez Sarah Palin), não me seduz. Mas até nisso Obama foi sempre mais sóbrio do que os seus adversários. Mesmo no momento da retumbante vitória, soube manter a sobriedade no elogio ao adversário derrotado e no apelo a todos os seus compatriotas para se unirem à sua volta nos sacrifícios e esforços em perspectiva. Lembrou-me as famosas palavras de JFK na sua tomada de posse, em Janeiro de 1961: «ask not what your country can do for you; ask what you can do for your country» («não pergunteis o que pode o vosso país fazer por vós, mas o que podeis fazer vós pelo vosso país»).
Também as reacções populares, um pouco por todo o mundo, a este histórico momento me fizeram recordar JFK, quando, em plena Berlim Ocidental recém-cercada pelo vergonhoso muro (Junho de 1963, poucos meses antes de ser assassinado), afirmou: «ich bin ein Berliner» («sou um berlinense»). Julgo que, hoje, muito de nós se sentem um pouco americanos, animados pela esperança de que o novo presidente ajude o nosso mundo, o cantinho de cada um de nós, a ser melhor.
Não é menos verdade que, durante esta longa maratona eleitoral de muitos meses, vi e ouvi coisas que me perturbaram. A campanha republicana resvalou não poucas vezes para a quase infâmia. Na fase final, John McCain ainda tentou corrigir os excessos verbais de membros do seu staff e de muitos apoiantes nos comícios, mas o estrago estava já feito. A ponto de Colin Powell, que fora Secretário de Estado de George W. Bush entre 2001 e 2005, vir a terreiro manifestar indignação e declarar o apoio ao candidato democrata. Na circunstância, acusou elementos republicanos de chamarem pública e reiteradamente «perigoso muçulmano» a Obama, sendo este cristão. Mas foi mais longe, perguntando: «e se ele fosse muçulmano, qual era o problema? Não é isto a América?». É, é a América, um país de dimensão continental, atravessado por vários fusos horários, onde o grosso dos estados sulistas e do centro (a “América profunda”) votou McCain, em larga medida condicionados pelo estigma racial. A maior afluência às urnas em cem anos (cerca de 66%) pode ter mostrado que a nação ansiava sofregamente por uma mudança radical, mas as divisões estão lá e não vai ser fácil unir este povo de mais de trezentos milhões de almas à volta do seu novo líder.
De igual modo, Barack Obama vai enfrentar grandes desafios na cena internacional. Se Hugo Chávez e Fidel Castro já o elogiaram, o titular do Kremlin, Dmitri Medvedev, pelo contrário, reagiu friamente à sua indigitação, criticando os EUA de forma extemporânea. O urso branco continua a querer recuperar velhos sonhos imperiais... E as relações com o Irão, a Coreia do Norte, o Zimbabué, o Sudão, “até” com a China?
Os desafios internos e externos são quase dantescos, é verdade. Mas, como escrevi no meu blogue mal se confirmou a sorte eleitoral, o sonho comanda a vida e os americanos e o mundo têm agora uma nova razão para sonhar com um futuro melhor. O peso sobre os ombros de Obama é enorme, mas, como dizia o mote da sua campanha, yes, we can!
(*) Texto revisto em relação à versão publicada no jornal, para corrigir ou aperfeiçoar pequenos pormenores entretanto detectados.
Nota: agradeço as generosas palavras do meu amigo Arnaldo Gonçalves sobre esta crónica no seu Exílio de Andarilho, assim como a menção na rubrica «Leituras» desta semana do Bairro do Oriente.
1 comentário:
Concordo. Os norte-americanos precisam mesmo de um futuro melhor, ou seja, menos mau. A realidade actual é devastadora: uma crise financeira sem precedentes, duas guerras sem fim à vista, um presidente altamente impopular em casa e no estrangeiro, um fosso crescente entre ricos e pobres. Só perante um cenário tão negativo foi possível eleger um presidente afro-americano. Se a situação não fosse tão má, e se Bush tivesse sido menos aventureiro, Obama não teria ganho.
Enviar um comentário