Coreia do Norte - o horror do gulag que o mundo teima em ignorar
Apesar de ser impossível obter números precisos, os governos ocidentais e os grupos de defesa dos direitos humanos estimam que centenas de milhares de pessoas tenham morrido nos campos de trabalhos forçados da Coreia do Norte.
Blaine Harden
Público
28 de Julho de 2009
Imagens e relatos do gulag da Coreia do Norte tornam-se cada vez mais precisos, angustiantes e acessíveis a cada ano que passa. Um apanhado dos testemunhos de sobreviventes e ex-guardas, recentemente publicado pela Associação Judicial Coreana, relata em detalhe as vidas e o dia-a-dia dos 200 mil prisioneiros políticos que se estima que estejam nesses campos. Com uma alimentação que consiste basicamente em milho e sal, perdem os dentes, as gengivas ficam pretas, os ossos enfraquecem e, à medida que os prisioneiros envelhecem, vão ficando curvados. A maioria trabalha entre 12 e 15 horas por dia até morrerem de doenças relacionadas com a má nutrição, geralmente por volta dos 50 anos de idade. Com apenas uma muda de roupa, vivem e morrem vestidos de farrapos, sem sabão, meias, roupa interior ou toalhas para a higiene.
Os campos nunca foram visitados por estrangeiros, por isso estes relatos não podem ser certificados de forma independente. Mas fotografias de satélites de alta definição, agora acessíveis a qualquer pessoa que disponha de uma ligação à Internet, revelam vastos campos de trabalhos forçados nas montanhas da Coreia do Norte. As fotografias corroboram as descrições dos sobreviventes, pois mostram: entradas para minas onde, contam os antigos prisioneiros, trabalhavam como escravos; centros de detenção onde ex-guardas afirmam que torturavam até à morte os prisioneiros que não colaboravam; e paradas onde os antigos prisioneiros, segundo estes contam, eram obrigados a assistir às execuções. As fotografias mostram também as torres de guarda e as cercas electrificadas que rodeiam os campos.
"Temos um sistema de escravatura mesmo debaixo do nosso nariz", declara An Myeong Chul, um guarda de campo que desertou para a Coreia do Sul. "Os grupos de defesa dos direitos humanos não conseguem pará-lo. A Coreia do Sul não consegue pará-lo. Os Estados Unidos vão ter que colocar este assunto na mesa de negociações".
Mas os campos de trabalho forçado não têm sido discutidos nos encontros entre os diplomatas norte-americanos e os oficiais da Coreia do Norte. Ao fazer explosões nucleares, lançar mísseis e cultivar uma reputação de beligerância extremamente sensível, o Governo de Kim Jong Il criou um ponto de instabilidade e insegurança na península da Coreia, e efectivamente atirou o tema dos direitos humanos para baixo da mesa de negociações.
"Falar com eles acerca dos campos de trabalho forçado é algo que ainda não foi possível fazer", diz David Straub, um alto-responsável no gabinete do Departamento de Estado dedicado aos assuntos coreanos durante as administrações Bush-pai e Clinton. Não houve ainda nenhum encontro desse tipo desde que o presidente Obama chegou à Casa Branca. "Eles ficam malucos quando se fala sobre isso", conta Straub, que é agora director adjunto do Departamento de Estudos Coreanos na Universidade de Stanford.
E os campos de trabalho forçado também não são um assunto de grande relevância para o público norte-americano, apesar de imagens com explicações poderem ser facilmente encontradas no Google Earth e de eles existirem há mais de meio século, 12 vezes mais velhos do que os campos de concentração nazis e o dobro do tempo do Gulag soviético. Apesar de ser impossível obter números precisos, os governos ocidentais e os grupos de defesa dos direitos humanos estimam que centenas de milhares de pessoas tenham morrido nos campos da Coreia do Norte.
Ninguém se interessa
Oficialmente, a Coreia do Norte nega a existência dos campos de trabalho forçado, restringe os movimentos dos poucos estrangeiros com permissão de entrar no país e pune severamente os que entram ilegalmente. As jornalistas norte-americanas Laura Ling e Euna Lee foram no mês passado condenadas a 12 anos de trabalhos forçados, após terem sido consideradas culpadas, num julgamento à porta fechada, das acusações de entrada ilegal no país.
Ao gulag da Coreia do Norte também faltam as luzes das atenções de celebridades. Nenhuma personalidade internacionalmente conhecida se chegou à frente para persuadir os norte-americanos a perceberem ou investirem emocionalmente neste assunto, diz Suzanne Scholte, uma activista de Washington que traz sobreviventes dos campos norte-coreanos até aos Estados Unidos para fazerem discursos e participarem em marchas.
"Os tibetanos têm o Dalai Lama e Richard Gere, os birmaneses têm Aung San Suu Kyi, no Darfur têm a Mia Farrow e o George Clooney", explica Suzanne. "Os norte-coreanos não têm ninguém assim".
Os guardas, antes de fuzilarem os prisioneiros que tentaram fugir, transformam cada execução num momento de "educação", de acordo com as entrevistas dadas por cinco norte-coreanos que afirmam ter assistido a esses assassínios.
Os prisioneiros com mais de 16 anos devem comparecer, e são forçados a ficar muito próximos dos condenados - até cinco metros, de acordo com estes depoimentos. Um oficial da prisão normalmente faz uma prelecção, explicando como o "Querido Líder", como Kim Jong Il é conhecido, ofereceu uma "hipótese de redenção" através de trabalhos forçados.
Colocam capuzes nas cabeças dos condenados e enchem-lhes as bocas com pedras. Três guardas disparam três vezes cada, enquanto os espectadores vêem sangue a jorrar e corpos a cair, contam os entrevistados.
"É quase como se nós próprios fôssemos também executados", afirma Jung Gwang Il, de 47 anos, e acrescenta que assistiu a dois fuzilamentos quando estava internado no Campo 15. Após três anos ali, diz Jung, foi autorizado a sair em 2003. Fugiu para a China e vive agora em Seul, capital da Coreia do Sul.
Tal como vários outros ex-prisioneiros, Jung Gwang Il considera que a pior parte do cativeiro foi o interrogatório antes do internamento nas mãos da Bowibu, a Agência de Segurança Nacional. Depois de trabalhar oito anos num gabinete governamental que tratava do comércio com a China, um outro empregado acusou-o de ser um agente a soldo da Coreia do Sul.
"Queriam que eu admitisse que era um espião", conta Jung. "Partiram-me os meus dentes da frente com um taco de basebol. Fracturaram-me o crânio várias vezes. Eu não era espião, mas após nove meses de tortura admiti que era espião." Quando foi preso, continua Jung, pesava 75 quilos. Quando terminou o interrogatório, pesava 36. "Quando finalmente cheguei ao campo, na realidade até aumentei de peso", diz Jung, que trabalhou durante os verões nos campos de milho e passou os invernos nas montanhas derrubar árvores.
"A maioria das pessoas morria de má nutrição, de acidentes de trabalho ou durante os interrogatórios", relembra Jung, que se tornou advogado de direitos humanos em Seul. "São as pessoas que perseveram que conseguem sobreviver. As que passam o tempo a pensar em comida enlouquecem. Eu trabalhei muito, por isso os guardas escolheram-me para ser chefe da minha caserna. Aí já não precisava de gastar tanta energia e conseguia aguentar-me apenas com milho".
Grupos de defesa dos direitos humanos, associações de advogados e comités de reflexão com verbas sul-coreanas já conseguiram perceber detalhadamente o que se passa nestes campos, com base em entrevistas aprofundadas com os sobreviventes e antigos guardas que escapam da Coreia do Norte para a China e conseguem chegar à Coreia do Sul.
Os motivos e a credibilidade dos norte-coreanos que desertam para o Sul podem ser questionados. Estão desesperados para conseguir ganhar a vida. Muitos recusam-se a falar a não ser que lhes paguem. Psicólogos sul-coreanos que interrogam os desertores descrevem-nos como coléricos, desconfiados e confusos. Mas também, em centenas de entrevistas separadas conduzidas ao longo de duas décadas, os desertores têm contado histórias semelhantes que traçam um retrato consistente da vida, trabalho, tormentos e morte nos campos de trabalhos forçados.
O número de campos tem sido avaliado entre cinco e 14 grandes instalações, de acordo com antigos oficiais que trabalharam nos campos. O Campo 22, perto da fronteira com a China, tem 50 quilómetros de comprimento por 40 de largura, uma área superior à cidade de Los Angeles. Estão lá internados até 50 mil prisioneiros, avançou um ex-guarda.
Eliminar as sementes
Existe um vasto consenso entre os investigadores quanto à forma como os campos funcionam: a maioria dos norte-coreanos é para lá enviada sem qualquer processo judicial. Muitos presos morrem enquanto estão nos campos sem chegarem a saber quais as acusações que sobre eles pendem. A culpa por associação é legal na Coreia do Norte, e por vezes três gerações da família de um transgressor estão aprisionadas, segundo uma regra de Kim Il Sung, o ditador e fundador da Coreia do Norte: "As sementes dos inimigos de classe, quem quer que sejam, devem ser eliminadas durante três gerações".
Crimes que justificam punição em campos de prisão política incluem oposição, real ou suspeita, ao Governo. "O sistema dos campos na sua totalidade pode ser considerado como um imenso e elaborado sistema de perseguição por razões políticas", escreve o investigador da área dos direitos humanos David Hawk, que tem estudado intensivamente os campos de trabalho forçado. Os criminosos de delito comum cumprem as suas penas noutros locais.
Aos prisioneiros é negado qualquer contacto com o mundo exterior, de acordo com o relatório da Associação Judicial Coreana de 2008 acerca dos direitos humanos na Coreia do Norte. O documento também indica que o suicídio é punido com maiores penas de prisão para os familiares que sobrevivem; os guardas podem espancar, violar e matar prisioneiros com toda a impunidade; quando prisioneiras ficam grávidas sem permissão, os seus bebés são mortos. A maior parte dos campos políticos são "zonas de controlo completo", o que significa que os detidos podem lá trabalhar até morrerem.
Existe, no entanto, uma "zona de revolucionarização" no Campo 15, onde os prisioneiros podem receber doutrinação terapêutica de socialismo. Após vários anos, se tiverem conseguido memorizar os escritos de Kim Jong Il, são libertados mas continuam a ser vigiados por agentes dos serviços de segurança.
Dado que oferece um porto seguro para desertores, a Coreia do Sul recebe muitos sobreviventes dos campos de trabalho forçado. Todos eles foram interrogados pelos serviços secretos da Coreia do Sul, que provavelmente sabem mais sobre estes campos do que qualquer outra organização fora de Pyongyang, a capital da Coreia do Norte.
Mas durante quase uma década, e apesar de revelações em relatórios académicos, documentários televisivos e livros de memórias, a Coreia do Sul evitou criticar publicamente o gulag do Norte. Absteve-se nas votações das resoluções das Nações Unidas que condenavam o comportamento da Coreia do Norte quanto aos direitos humanos, e não mencionou os campos ao longo dos encontros de líderes em 2000 e 2007. No entretanto, sob a nova sunshine policy de relacionamento pacífico, a Coreia do Sul tem feito grandes investimentos financeiros no Norte, e anualmente tem também efectuado imensas doações de alimentos e fertilizantes.
O público tem-se também mantido, em geral, silencioso. "Os sul-coreanos, que publicamente apregoam as virtudes do amor fraternal, têm inexplicavelmente estado afundados num profundo pântano de indiferença", de acordo com a Associação Judicial Coreana, que afirma publicar os relatórios sobre os direitos humanos na Coreia do Norte para "quebrar o impasse".
A política governamental alterou-se desde o ano passado, pois o Presidente Lee Myung-bak parou com a ajuda sem quaisquer condições, apoiado nas resoluções das Nações Unidas que condenam o Norte e tentam colocar os direitos humanos à mesa das negociações com Pyongyang. Em resposta, a Coreia do Norte chamou a Lee "traidor", reduziu o comércio entre as duas Coreias e ameaçou com a guerra.
Como porcos
Permitiram a An Myeong Chul trabalhar como guarda e motorista em campos de prisão política, afirma ele, porque é de uma família digna de confiança. O seu pai era agente dos serviços secretos da Coreia do Norte, tal como eram os pais da maioria dos guardas seus colegas. No seu treino para trabalhar nos campos, conta An, ordenaram-lhe, sob pena de ele próprio ficar prisioneiro, a nunca mostrar piedade. Era permitido que os guardas entediados espancassem ou matassem prisioneiros.
"Ensinavam-nos a olhar para os detidos como se fossem porcos", diz An, de 41 anos, que adianta ainda que trabalhou nos campos de trabalhos forçados durante sete anos antes de fugir para a China em 1994. Actualmente trabalha num banco em Seul.
As regras que ele fazia cumprir eram simples. "Quem não atinge a sua quota não come grande coisa", conta. "Não se pode dormir até acabar o trabalho. Quem não termina o seu trabalho é enviado para uma prisão dentro do campo. Nessa prisão, em três meses está-se morto".
An afirma que os campos de trabalho forçado têm um papel fundamental na manutenção do regime totalitário: "Todos os oficiais de alta patente abaixo de Kim Jong Il sabem que um passo em falso significa ir para os campos, juntamente com toda a sua família".
Em parte para aliviar a sua consciência, An tornou-se activista e tem falado e discursado acerca dos campos ao longo de mais de uma década. Esteve entre os primeiros a ajudar os investigadores a identificar os edifícios dos campos utilizando imagens de satélite. Mas é da opinião que nada mudará no que se passa nesses campos sem uma pressão política sustentada, especialmente por parte dos Estados Unidos.
O Governo norte-americano tem-se mostrado um defensor dos direitos humanos instável. Nos anos de Bill Clinton, os contactos diplomáticos entre Washington e Pyongyang centraram-se quase exclusivamente em evitar que o Norte desenvolvesse armas nucleares e expandisse a sua capacidade de mísseis balísticos. A Administração de George W. Bush adoptou uma abordagem radicalmente diferente: num famoso discurso, o Presidente considerou a Coreia do Norte como parte do "eixo do mal", juntamente com o Irão e o Iraque. Bush encontrou-se com sobreviventes dos campos de trabalho forçado e, durante cinco anos, os diplomatas dos Estados Unidos recusaram negociar directamente com a Coreia do Norte.
Após a Coreia do Norte ter testado um engenho nuclear em 2006, a Administração Bush decidiu conversar. No entanto, as negociações focaram-se exclusivamente no desmantelamento do avançado programa nuclear de Pyongyang.
Nos últimos meses, a Coreia do Norte renegou a sua promessa de abandonar as armas nucleares, expulsou os inspectores de armas da ONU, fez explodir um segundo engenho nuclear e criou uma grande crise de segurança no Nordeste asiático.
Travar essa crise tem monopolizado as negociações da Administração Obama com a Coreia do Norte. Os campos de trabalho forçado, de momento, não são assunto a tocar.
"Infelizmente, até termos a ameaça à segurança sob controlo não nos podemos dar ao luxo de lidar com direitos humanos", diz Peter Beck, antigo director executivo do Comité das Nações Unidas para os Direitos Humanos na Coreia do Norte.
Kim Young Soon, que foi dançarina em Pyongyang, conta que na década de 70 passou oito anos no Campo 15. Sob a lei da culpa por associação, diz, o seu pai, a mãe e os quatro filhos foram também internados no mesmo campo.
Após deixarem o campo, os seus pais morreram à fome e o seu filho mais velho afogou-se. Na altura em que foi presa, o seu marido foi morto enquanto tentava fugir do país, tal como aconteceu com o seu filho mais novo depois de ter sido libertado do campo.
Apenas em 1989, mais de uma década depois de ter sido libertada, soube a razão por que tinha sido internada. Um oficial dos serviços de segurança disse-lhe então que foi punida porque tinha sido amiga da primeira mulher de Kim Jong Il e que "nunca poderia ser perdoada" se o Estado suspeitasse que ela tinha coscuvilhado sobre o "Querido Líder".
Fugiu para a China em 2000 e vive agora em Seul. Com 73 anos, declara que está furiosa por o mundo exterior não mostrar mais interesse pelos campos de trabalho forçado. "Tive uma amiga que gostou de Kim Jong Il, e por causa disso o Governo matou a minha família", diz. "Como é que alguém pode justificar ou perdoar isso?".
Com Stella Kim, correspondente na Coreia. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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