quinta-feira, 16 de julho de 2009

Antologia da transparência (V)

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
16 de Julho de 2009

O Clarim de 4 de Fevereiro de 2000 mantinha o tom marcadamente negro sobre a Fundação Jorge Álvares: «o Conselho de Curadores da fundação nascida e criada à medida de Rocha Vieira ignorou as preocupações dos portugueses nascidos ou radicados em Macau, relativamente à imagem extremamente pejorativa que a novel instituição originou no Território e mesmo em Hong Kong (...). Melhor faria se fizesse uma leitura correcta das mais recentes posições tomadas em Macau, todas elas desfavoráveis à manutenção da FJA. A situação é clara. Independentemente dos propósitos louváveis que sustentam iniciativas deste género, a verdade é que esta fundação veio provocar um número respeitável de anticorpos juntos dos destinatários privilegiados, a saber: as comunidades chinesa e portuguesa de Macau e o governo da RAEM como parceiro institucional. Todos eles, sem excepção, reprovaram veementemente o nascimento da fundação, pondo de imediato em causa qualquer sustentação prática aos planos de aproximação entre Portugal e a China através do Território».

Nova semana, novo escândalo: em trabalho assinado por Paulo Azevedo, o Ponto Final de 11 de Fevereiro revelava que o general tivera uma «despedida milionária»! Os pormenores: «antes de abandonar o território, e feitas as contas ao que o governador afirmou ter direito, recebeu mais de dois milhões de patacas em dinheiro e serviços pagos pelo erário público. Em menos de nove anos à frente do Governo, Rocha Vieira (...) acabou por receber 1.375.000 patacas (mais de 34 mil contos) só em “abonos por cessação definitiva de funções”. Vieira, cujo salário rondava as 130.000 patacas mensais, fora regalias adicionais, garantiu que praticamente não gozou férias. Segundo dados a que o Ponto Final teve acesso, a maior fatia dos abonos do ex-governador foi a correspondente ao pagamento de férias não gozadas, nada menos que 150 dias. Rocha Vieira multiplicou os 22 dias úteis de descanso anual pelos nove anos incompletos de governação, chegando à conclusão que, dos cerca de 190 dias de férias a que tinha direito, só terá gozado escassos 40 dias, ou seja, sensivelmente o período de lazer de dois anos, trabalhando sem parar os restantes sete anos. Em nome do futuro e desenvolvimento de Macau. Mas como o trabalho acaba por compensar, Vieira não hesitou em receber a maquia correspondente aos 150 dias de férias não desfrutadas, que totalizaram 885.000 patacas (cerca de 22 mil contos)».

Mas as contas de somar não se ficavam por aqui: «por “antecipação dos vencimentos dos 19 dias de Dezembro” (até à transferência da administração de Portugal para a China), Vieira recebeu 82.000 patacas. Por 27,5 dias de “vencimento por 11 meses de trabalho efectivamente prestado no ano”, duodécimos do chamado 13.º mês, 118.000 patacas. Por “compensação pecuniária correspondente a 60 dias de licença especial”, 260.000 patacas. E, por uma “representação eventual” nos 19 dias de Dezembro, 28.000 patacas. Nestas contas, não foram esquecidas as 2.500 patacas a que o ex-governador tinha direito por “ajudas de custo de embarque”. O que deu o valor final de 1.375.000 patacas».

Na altura, o Ponto Final confrontou o director dos Serviços de Finanças com estes números, mas Carlos Ávila «preferiu não tecer quaisquer comentários».

Além deste imenso numerário, havia o pormenor dos contentores, muitos contentores, continuava o Ponto Final: «nos últimos seis meses da presença do então governador, Vieira procedeu ao envio de quinze contentores para Portugal. A 30 de Junho passado, uma requisição com carácter de emergência pedia o envio de cinquenta metros cúbicos de bagagem e pagamento do respectivo seguro. Menos de três meses depois, a 12 de Outubro, embarcava com destino a Lisboa novo carregamento em nome de Vasco Rocha Vieira, mas desta vez totalizando 310 metros cúbicos, o que orçou aos cofres do território 630.000 patacas. E, a 15 de Dezembro, nova requisição para mais 59 metros cúbicos de bagagem, esta destinada à nova moradia do ex-ocupante de Santa Sancha, a Quinta do Patiño, em Cascais. No total, e fazendo as contas ao frete, ao seguro e ao transporte terrestre, o custo dos três embarques ultrapassou as 750.000 patacas (mais de 18 mil contos)».

Ironizando com as sucessivas revelações adversas ao general, Paulo Azevedo preenchia a sua crónica semanal «Os Sínicos» com a peça «Em nome da transparência», onde evocava os constantes apelos de Aragão Seia e Mendonça de Freitas - os dois antigos altos-comissários - para o reforço das verbas do organismo a que haviam presidido, «de forma a fazer face aos escassos recursos humanos que diziam possuir (...). Esses apelos foram consecutivamente atirados para canto, como se o anterior Governo se desse por satisfeito com os resultados alcançados e que eram amplamente criticados pela população, que chegava ao ponto de ironizar os casos detectados, que não iam, na maior parte deles, além das duzentas patacas». E fazia o contraponto entre o novo Chefe do Executivo e o ex-governador: «Edmund Ho concorda com o reforço do agora Comissariado Contra a Corrupção. Em verbas e poderes (...). O crescimento já foi ponderado, passando dos actuais 32 milhões para cerca de 50 milhões de patacas. Ou seja, Edmund Ho não desconhece que, para se exigirem resultados, é necessário providenciar meios. Rocha Vieira, esse, aparentemente, fazia as contas de outra forma, vá-se lá saber porquê...!?» (acrescentaria eu que, pelos vistos e com muita pena minha, a vocação do CCAC para o “peixe miúdo” é mais um dos males da RAEM herdados do “pré-99”...).

O Ponto Final revelava, ainda, que o apartamento da Avenida Miguel Bombarda, em Lisboa, que constava dos estatutos da FJA como sua sede social pertencia, estranhamente, a um designado «Instituto Internacional de Consultadoria e Formação». João Paulo Meneses tentara contactá-lo para perceber a sua relação com a FJA, mas o número de telefone indicado pela Portugal Telecom e o número de faxe constante de um comunicado da própria FJA (e que estava em nome do dito instituto!) mantinham-se silenciosos. Certo era que, fruto do alvoroço envolvendo o seu financiamento, a FJA não chegara a ocupar qualquer espaço na Missão de Macau.

Uma frase de então que me ficou na memória até hoje foi esta: «caminhamos para o dia em que os portugueses se dividirão entre os que estiveram em Macau e os que não estiveram». Foi escrita por Francisco Teixeira da Mota no Público de 12 de Fevereiro de 2000, na sua resenha semanal dos diplomas publicados no Diário da República. Ao citar um decreto-lei que instituía uma licença especial para o exercício de funções públicas em Timor Leste, caracterizada como tendo «semelhanças com a licença definida (...) para o exercício de funções no território de Macau», “saltou-lhe a tampa” e verberou: «por favor!!! Durante seis meses não se devia ouvir falar de Macau... Caminhamos para o dia em que os portugueses se dividirão entre os que estiveram em Macau e os que não estiveram. As recentes “histórias” do governador Rocha Vieira são, pelo menos, edificantes».

Claro está, Rocha Vieira reincidia no «Desce» da semana para o Público: «o general que passou oito anos dedicado de alma e coração à espinhosa missão de representar o Estado português em Macau, afinal, recebeu uma choruda recompensa. Notícias não desmentidas pelo general dão conta que, entre outras verbas auferidas por conta da cessação de funções, teve direito a 22 mil contos por 150 dias de férias não gozadas. A dedicação aos altos assuntos do Estado é mais compensatória do que os vulgares cidadãos pensavam. O que não seria dos contribuintes portugueses se tivessem de pagar à generalidade da classe política os fins-de-semana e as férias que com devotado espírito de generosidade sacrificam à causa pública... O que nos consola é que, no caso de Rocha Vieira, é tudo patacas dos casinos...».

(continua na próxima semana)

Nota: agradeço ao Bairro do Oriente a amável referência a esta crónica na sua habitual selecção de «Leituras» da semana.

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