Nuno Lima BastosJornal Tribuna de Macau11 de Setembro de 2008Na minha crónica da semana passada, protestei contra o uso da palavra «paralímpicos» por alguns órgãos de comunicação social de língua portuguesa em Macau. Resultado: o
Ponto Final passou a escrever «paraolímpicos», o
Jornal Tribuna de Macau optou, como eu, por «para-olímpicos» e o
Hoje Macau manteve-se nos «paralímpicos», tal como a TDM. Nas ruas de Macau, são também omnipresentes as faixas de apoio aos «13.ºs Jogos Paralímpicos» (de Pequim).
Mas não é só aqui que esta singular palavra tem sido utilizada, infelizmente: no telejornal da RTP, é o que mais se ouve nestes dias. Até jornais nacionais de referência, como o
Público, escrevem sobre os «Jogos Paralímpicos», não obstante as muitas reclamações dos seus leitores, incluindo eu próprio.
Não querendo ser fundamentalista, julgo que se entrou na generalização do erro. É um daqueles casos em que alguém começa a escrever mal e, de repente, muita gente entende que a palavra está correcta. «Uma mentira dita muitas vezes acaba por se tornar uma verdade», já dizia Joseph Goebbels (*), o líder da máquina de propaganda nazi. Temos é que ter cuidado, pois, qualquer dia, substantivos como «futebol» e «basquetebol» passam a escrever-se «futbol» e «basquetbol», só por derivarem dos britânicos «
basketball» e «
football»...
O desatino é tanto que, na sua nota de abertura de há três dias, o
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (cá estou eu outra vez com ele, pois é) escreveu: «é verdade que a língua evidencia princípios à revelia da lógica. É verdade também que a língua, sendo um sistema, apresenta muitos sintomas de heterogeneidade. Mas escrever “paralímpico” em vez de “paraolímpico”, como está determinado por documento legal, já não cabe em nenhuma explicação de ordem linguística».
Contudo, o legislador português também não ajuda muito a resolver a contenda. Basta consultar meia dúzia de diplomas recentes ligados ao desporto. Por exemplo, nos termos do artigo 26.º da
Lei de Bases do Desporto (Lei n.º 30/2004, de 21 de Julho), «ao Comité Paraolímpico de Portugal aplica-se, com as devidas adaptações, o disposto no artigo anterior relativamente aos praticantes desportivos portadores de deficiência e aos Jogos Paraolímpicos». No entanto, a norma equivalente da
Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro), que substituiu aquela, opta pelo «Comité Paralímpico de Portugal» (artigo 13.º). A Portaria n.º 393/97, de 17 de Junho, por sua vez, «concede prémios aos cidadãos com deficiência que se classifiquem num dos três primeiros lugares de provas dos jogos paraolímpicos ou de campeonatos do Mundo ou da Europa e da Taça do Mundo de Boccia». Já a versão portuguesa da
Convenção Internacional contra a Dopagem no Desporto, aprovada pelo Decreto n.º 4-A/2007, de 20 de Março, contém designações como «Comité Paralímpico Nacional», «Comité Paralímpico Internacional» e «Jogos Paralímpicos». Uma salgalhada...
O que dizem os linguistas, então? A Associação de Informação Terminológica, presidida pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (uma associação privada sem fins lucrativos que tem como associados a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a Universidade de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa), emitiu em Janeiro de 2005, a pedido do Instituto do Desporto de Portugal, um parecer onde esclarece que, «em português, o termo em questão resulta de um empréstimo do termo inglês
paralympics», que «constitui uma amálgama, tendo sido construído com base no cruzamento de
para(
plegic) + (
o)
lympics».
Depois, e sem querer reproduzir aqui o texto integral do documento (que pode ser consultado no meu blogue ou em
http://www.ait.pt/index2.htm), é ali explicado que, «ao serem integradas em português (e noutras línguas), as palavras provenientes de outras línguas sofrem sempre adaptações, que podem ser conscientes ou inconscientes, e que podem consistir na simples alteração fonética da palavra, ou na sua adaptação morfológica, entre outras. Especialmente quando as palavras importadas de outras línguas constituem termos científicos e/ou técnicos, esses termos deveriam ser sempre alvo de intervenção consciente de alguma(s) entidade(s), de modo a não introduzir na língua termos que sejam violadores da sua estrutura (nomeadamente, morfológica) e que, por isso mesmo, sejam opacos para os seus utilizadores».
E continua, mais à frente: «nos últimos anos, tem surgido nesta língua um número crescente de amálgamas, mesmo em terminologias científicas e técnicas, resultantes, sobretudo, da importação de outras línguas, de termos construídos por este processo mas também de construção autóctone. (...) A amálgama pode ser construída (...) com sílabas iniciais da primeira palavra que se juntam à segunda palavra, que mantém a sua integridade (ex.:
tele(
fone) +
móvel ou
info(
rmação) +
alfabetização). Será mais consentâneo com a estrutura da língua portuguesa, portanto, que o termo em causa mantenha a vogal inicial
o da palavra
olímpico».
Assim, conclui aquele parecer que «a forma
paralímpico é violadora da estrutura do português, não sendo transparente, pelo que se preconiza a sua substituição por uma forma em que a palavra
olímpico mantenha a sua integridade (...). Por tudo isto, desaconselha-se vivamente o uso da forma
paralímpico em documentação oficial e em discurso formal escrito de grande visibilidade».
A pedido da própria RTP, Maria Regina Rocha, licenciada em Filologia Românica, mestre em Ciências da Educação, professora na Escola Superior de Educação de Coimbra e membro do Conselho Consultivo do
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, também emitiu recentemente um esclarecimento onde defende que «as palavras
paraolimpíadas e
paraolímpico deverão manter o
o que constitui a sílaba inicial da palavra-base (
paraolímpico, e não
paralímpico)».
E clarifica: «quer se considere a palavra formada de
paraplegics e
Olympics, quer com o elemento grego
para- (que exprime a ideia de aproximação, proximidade, presente, por exemplo, nas palavras
paramédico e
parapsicologia) e a palavra
olímpico, essa vogal
o deve manter-se. Suprimir a vogal
o significa atentar contra a integridade semântica da palavra, formada a partir da palavra
Olimpíadas.
Olimpíadas e
olímpico são palavras da família de Olimpo, a morada das divindades da mitologia grega, monte entre a Macedónia e a Tessália, e de Olímpia, cidade-berço dos mais famosos jogos da Antiguidade Clássica. Em síntese: não é recomendável a supressão da sílaba inicial
o, pois o radical das palavras
Olimpo e
Olímpia contém-no. Estas palavras têm como sílaba inicial esse
o, e não
lim. O radical de uma palavra é o seu elemento essencial, portador do sentido primitivo e fundamental, e, portanto, é invariável. No caso em apreço, a supressão da sílaba
o atenta contra a própria essência do berço das Olimpíadas, a cidade de Olímpia».
Podia continuar a citar mais alguns testemunhos técnicos que rebatem o uso da palavra «paralímpicos», mas dou-me por satisfeito com estes dois, até porque nunca encontrei um único texto com um mínimo de profundidade a sustentar o uso daquele termo. Os argumentos ficam-se sempre e apenas pela invocação da forma inglesa «
paralympics» (como se isso justificasse, por si só, qualquer livre adaptação para o português) ou pela referência a «um processo de síncope, comum em português, que consiste na eliminação de um fonema no interior de uma palavra» (Pedro Mendes, FLiP, Setembro de 2004) – muito pouco para justificar tamanha monstruosidade!
Depois de tudo isto, optar entre «paraolímpicos» ou «para-olímpicos» (isto é, usar ou não o hífen) acaba por ser, para mim, uma questão menor. Segundo a Base XV do Acordo Ortográfico, o hífen será de manter «nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival [ainda prefiro «adjectival»...], numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido». Daí, provavelmente, a preferência do
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa por «para-olímpicos». Contra o uso do hífen, argumenta-se, nomeadamente, que, nos termos da Base XVI do Acordo Ortográfico, o elemento
para- pode também ser classificado como um «elemento não autónomo ou falso prefixo, de origem grega e latina», que dispensaria a hifenização em palavras como «paraolímpico».Deixo este debate entre «paraolímpicos» e «para-olímpicos» para os especialistas. Da minha parte, fico descansado desde que me poupem à aberração «paralímpicos»!
(*) Os meus agradecimentos ao meu amigo Severo Portela pelo reparo (em P.S. à sua crónica do
Hoje Macau de 12 de Setembro). É no que dá escrever a contra-relógio...
P.S.: já depois de esta crónica ter sido publicada, foi com alegria que vi o
pivot (ou «pivô», se preferirem) do telejornal de hoje da RTP pronunciar, finalmente, «jogos paraolímpicos» (ou «para-olímpicos» - o som é igual) e a designação aparecer assim redigida nas legendas das peças sobre a prova. Pena foi que a repórter dessas peças continuasse a falar em «paralímpicos»...
Aproveito, ainda, a oportunidade para acrescentar que o corrector ortográfico do
Blogger (que uso antes de publicar qualquer posta) não reconhece nem «paralímpicos» nem «paraolímpicos»; apenas «para-olímpicos». É cá dos meus!
Entretanto, esta crónica foi referenciada em nota a um texto do
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa de 16 do corrente, que pode ser consultado
aqui)