Jornal Tribuna de Macau
18 de Junho de 2009
Dez anos depois, o último governador de Macau voltou ao território. Vasco Rocha Vieira distribuiu sorrisos e abraços e falou de muitas coisas; entre elas, da malfadada Fundação Jorge Álvares (FJA). Podia ter aproveitado a distância temporal dos factos para fazer um vago mea culpa, por muito arrevesado que fosse. Podia ter pedido desculpa aos compatriotas que aqui ficaram pelo enxovalhamento a que o bom nome do nosso país foi sujeito à conta da sua egoísta criação. Mas não, o senhor general não aprende...
Em vez disso, preferiu aproveitar o ambiente favorável do jantar em sua homenagem no Clube Militar para dizer que «cumpri o meu dever e nunca deixei de dormir por causa da fundação. Não acredito que haja fundações com maior transparência que esta» (Hoje Macau, 15 de Junho).
Pois eu discordo em absoluto e vou explicar porquê, mas de uma forma diferente do habitual nos meus textos. Não com as minhas próprias palavras, mas com os relatos e apreciações de muitos outros actores daquela época: dirigentes políticos, jornalistas, figuras públicas de então e de hoje, daqui e de Portugal, do lado português e do lado chinês. Passou-se uma década; é altura de abrirmos o livro: esta é a primeira de uma série de crónicas sobre a transparência do general e da sua fundação – uma antologia da transparência!
O escândalo rebentou em meados de Janeiro de 2000. A agência LUSA noticiava que Rocha Vieira ia presidir ao conselho de curadores de uma nova instituição sediada em Lisboa, a FJA, financiada com cinquenta milhões de patacas transferidos, escassos dias antes do handover, de uma fundação pública local, a Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau (FCDM), encabeçada até 19 de Dezembro de 1999 pelo próprio ex-governador, por inerência de funções. Outros cinquenta (ou cem?) milhões teriam sido doados pela STDM, de Stanley Ho. O novo cargo seria remunerado com oitenta mil patacas mensais – cerca de dois mil contos, ao câmbio da altura.
O tema teve, como se pode imaginar, imediato e amplo eco na comunicação social de Portugal e de Macau, merecendo, ainda, a atenção dos jornais da vizinha Hong Kong (está, aliás, disponível no meu blogue uma compilação de peças do South China Morning Post sobre isto).
Sucederam-se as notícias e editoriais a vilipendiar os “piratas” portugueses. O Ou Mun publicava um cartoon com o general em cima de um avião, levando um saco de dinheiro às costas e a dizer adeus ao território. No saco, podia ler-se, em chinês, «FDCM» e «cinquenta milhões» (o Ponto Final, então um semanário, reproduziu-o, devidamente traduzido, na sua edição de 28 de Janeiro). Também o South China recorreu aos cartoons, desenhando a famosa imagem de Rocha Vieira com a bandeira ao peito, mas com notas a saltarem dela.
Triste, muito triste, especialmente para aqueles que, como eu, aqui continuavam e eram diariamente confrontados com este achincalhamento da nossa nação. Mas como censurar a indignação generalizada? Afinal, a indignação também era minha, nossa, mas contra quem dera origem a tudo isto; contra o(s) autor(es), não contra os delatores ou os outros indignados. Pelo meio, algum humor lusitano, como os trocadilhos que iam sendo feitos à volta da abreviatura da RAEM: «Realmente Agora Estamos Melhor» ou, num tom mais mordaz, «Rocha Algarvio Está Milionário»...
Em Portugal, o Expresso, que tanto dinheiro recebera em pagamento de cadernos publicitários encomendados pela administração vieirista, acusava, pela mão de Fernando Madrinha: «os factos são os factos! Rocha Vieira, enquanto governador e presidente do Conselho de Curadores de uma fundação em Macau, promoveu ou aprovou a transferência de verbas destinadas a essa fundação para uma outra de que ele mesmo acabaria por se tornar o presidente em Lisboa (...). Custa a crer que o ex-governador não tenha avaliado os riscos deste mau passo em que aparece como parte interessada. E a propósito do qual haveria de se colocar sempre a velha questão do ser e do parecer, independentemente de todo o respeito por leis e formalidades».
Localmente, o chinês Today Macau referia que «Stanley Au, responsável pela fiscalização da Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento, disse não ter tido conhecimento da transferência dos cinquenta milhões de patacas».
Já segundo O Clarim, «a polémica vai sobrar para Belém, que aguentou Rocha Vieira a contragosto nos últimos quatro anos do período de transição, provando que Jorge Sampaio continua a ser um homem muito mal informado do que se estava a passar em Macau até 19 de Dezembro último».
João Drago, no Jornal Tribuna de Macau, rematava: «por este andar, o período de quarentena que a comunidade portuguesa, aparentemente, atravessa corre o risco de se prolongar por tempo indeterminado».
(continua na próxima semana)
Nota: agradeço ao Bairro do Oriente a inclusão desta crónica (entretanto, também citada no Bacteriófago) na sua habitual selecção de «Leituras» da semana.
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