Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
25 de Junho de 2009
A segunda parte desta «Antologia da Transparência» vai fazer como algumas séries televisivas e recuar uns dias em relação ao que escrevi na semana passada. Isto porque, ao revirar o meu arquivo pessoal, encontrei um conjunto de textos relevantes que me haviam escapado quando arranquei com o tema.
A (falta de) transparência da última obra do derradeiro governador de Macau foi destacada logo na primeira peça do Ponto Final sobre o assunto: na capa da edição de 14 de Janeiro de 2000, sob a caixa «A prenda do general», podia ler-se que «cem milhões de patacas, dos dinheiros do jogo, estão na base da criação em Lisboa de uma nova fundação. Chama-se Jorge Álvares e é presidida por Rocha Vieira. Foi tudo acordado numa reunião em segredo no Hotel Mandarin (...). Edmund Ho terá concordado com a iniciativa» (contudo, no número seguinte do então semanário, esclarecia-se que, nessa reunião realizada a 18 de Dezembro, onde haviam sido endereçados os convites para membro do conselho de curadores da nova instituição, «em momento nenhum terá sido afirmado que parte da verba necessária à constituição da Fundação Jorge Álvares provinha do erário público»).
No dia 15 de Janeiro, o Expresso noticiava que a Fundação Jorge Álvares (FJA) nascera «da Liga de Amigos do Centro Científico e Cultural e do Museu de Macau», indo «funcionar num quarto andar do edifício da Av. 5 de Outubro, em Lisboa, onde funcionava a Missão de Macau, cedido para o efeito pelo Executivo da Região Administrativa Especial de Macau liderado por Edmund Ho». Começava aqui, aliás, um conjunto de cerca de três dezenas de notícias do Expresso sobre a matéria, publicadas ao longo dos primeiros meses desse ano, que geraram largas centenas de mensagens dos leitores no seu sítio na Internet, quase todas extremamente críticas em relação ao consulado de Rocha Vieira, num fenómeno de tal dimensão que serviu de base para a tese de pós-graduação do jornalista José Pedro Castanheira, publicada em forma de livro em Novembro de 2004, com o título «No Reino do Anonimato».
A 18 de Janeiro, o caso ganhava destaque na imprensa de Hong Kong, com o The Standard a divulgar que Edmund Ho ordenara à Fundação para a Cooperação e Desenvolvimento de Macau (FCDM) a apresentação de um relatório urgente sobre os cinquenta milhões de patacas «secretamente transferidos para Portugal antes da transferência de soberania». Segundo «uma fonte próxima da FCDM» citada pelo jornal, «a apropriação dos cinquenta milhões de patacas era inicialmente para subsidiar um museu em Portugal para fazer exibições sobre Macau e promover a cultura de Macau. Por vezes, é muito difícil verificar se o uso do dinheiro muda a meio do caminho». O diário acrescentava que a verba fora solicitada em Setembro de 1999 e transferida para o nosso país em Novembro, quando o governo do território e a FCDM eram ainda encabeçados pelo general, tendo este «consignado a verba para criar uma nova fundação em Portugal sob o nome de Fundação Jorge Álvares». Mais à frente, asseverava que «a presidente da Assembleia Legislativa da RAEM, Susana Chou, resignou imediatamente da Fundação Jorge Álvares assim que ouviu as notícias sobre a transferência», declarando que «quando o ex-governador me convidou para integrar o conselho de curadores da sua fundação em Portugal, realçou que era uma operação privada sem um único avo de Macau. Quando soube da transferência do dinheiro, resignei de imediato e telelefonei ao Sr. Vieira para lhe expressar a minha opinião sobre este assunto» (declarações originalmente proferidas ao Va Kio e também citadas pelo Ponto Final e O Clarim de 21 de Janeiro).
Ainda em Hong Kong, o South China Morning Post da mesma data noticiava que Anabela Ritchie, anterior presidente da Assembleia Legislativa, teria dito ao general que «não queria fazer parte do conselho da nova fundação porque discordava do seu financiamento» (volvidos dois dias, o conselho de curadores da FJA, em comunicado enviado à LUSA, justificou esse afastamento com «razões pessoais» e o de Susana Chou com o seu cargo parlamentar).
A 19 de Janeiro, Edmund Ho nomeava uma comissão para analisar o processo do envio dos fundos da FCDM para a FJA, composta pelo juiz Vasco Fong, o advogado e deputado Vong Hin Fai e a contabilista Ho Mei Va. O relatório final deveria estar pronto em 45 dias. Em declarações à imprensa, o Chefe do Executivo demarcava-se do projecto do seu antecessor, afirmando que «todo o processo decorreu antes da transferência da administração (...). Os trabalhos da administração portuguesa não necessitavam da aprovação do Chefe do Executivo da RAEM, que na altura era apenas indigitado (...). Emprestámos provisoriamente e com pagamento de renda as instalações (na Missão de Macau) porque eram um espaço destinado a instituições relacionadas com Macau, mas não se tratou de uma oferta ou de um apoio directo» (O Clarim, 21 de Janeiro).
O jornal Tai Chung, invocando fontes do gabinete do Chefe do Executivo, referia que este «não concorda com o modo como foram obtidos os fundos para a criação da fundação».
Ainda segundo O Clarim de 21 de Janeiro, esta «polémica coloca a comunidade portuguesa residente na incómoda situação de carregar um fardo que lhe não pertence – mais, que repudia – e que confirma a atitude de Rocha Vieira como um governador que pouco ou nada acarinhou os portugueses que aqui permanecerão para trabalhar na RAEM».
No Ponto Final daquele dia, era apresentado o habitual resumo dos ecos da imprensa da semana, onde se podia ler que «ninguém sublinhou o défice democrático que sempre marcou as administrações de Macau e a de Rocha Vieira foi também um mau exemplo» (Eduardo Dâmaso, Público) ou «surpreendentemente, o grande problema de Macau continua a ser o mesmo: a ex-comunidade portuguesa. Não a que ficou, mas a que partiu recusando-se a partir. Ao que parece, não bastaram anos e anos de saque porque a dez dias do fim foi irresistível meter a mão na massa» (Carlos Morais José, Jornal Tribuna de Macau).
O Ponto Final destacava, ainda, que «o Presidente Jorge Sampaio desconhecia o processo de constituição da Fundação Jorge Álvares, liderada por Rocha Vieira. E fontes de Belém dizem-se “chocadas” com o que se passou». Mais à frente, referindo-se ao contacto efectuado com «vários responsáveis políticos em Lisboa», o semanário concluía, pela pena de João Paulo Meneses, haver «um sentimento unânime de condenação: tudo ter sido feito à última hora, sem qualquer informação e transparência e até mesmo sonegando factos (Rocha Vieira, quando confrontado nos últimos dias de governador com o futuro, disse que só pensava no que iria fazer quando chegasse a Lisboa)».
Em editorial, Ricardo Pinto frisava que o ex-governador «tenta agora justificar o injustificável alegando que o seu sucessor teria sido informado de tudo com o máximo detalhe. Mesmo que assim fosse, isso em nada diminuiria a censurabilidade da iniciativa. Quando muito, apenas co-responsabilizaria Edmund Ho num acto condenável. Aparentemente, Rocha Vieira pretende distrair as atenções do essencial. O modo como a fundação foi criada e financiada e o seu aparecimento à frente da respectiva direcção. E nada disso tem desculpa ou faz qualquer tipo de sentido (...). Parece ser hoje inegável que Rocha Vieira não é visto com bons olhos pela população de Macau, bem como por uma grande parte da classe política local».
Na rubrica «Sobe e Desce» do Diário de Notícias de 22 de Janeiro, Rocha Vieira era a única figura premiada com a descida, justificada nestes termos: «as fundações continuam na moda. Político ou empresário que se preze, no fim de uma caminhada ou mesmo a meio, perde-se por uma fundação. O ex-governador também não resistiu. Lembram-se da Fundação Oriente?».
O Público alinhava pelo mesmo diapasão e brindava, igualmente, o general com a descida da semana.
(continua na próxima semana)
Nota: agradeço ao Bairro do Oriente a inclusão desta crónica na sua habitual selecção de «Leituras» da semana.
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