sexta-feira, 5 de junho de 2009

Interpretações...

Nuno Lima Bastos
5 de Junho de 2009

O relacionamento entre a candidatura de Chui Sai On a Chefe do Executivo e os media tem sido marcado por uma, no mínimo, questionável interpretação da lei eleitoral de Macau. O centro da polémica é o artigo 49.º da Lei n.º 3/2004, que enumera algumas das acções possíveis de campanha eleitoral; entre elas, a concessão de entrevistas aos meios de comunicação social, a apresentação dos programas políticos e a realização de alocuções e sessões de esclarecimento, bem como de encontros e reuniões com os membros da Comissão Eleitoral de trezentos elementos que vai escolher o sucessor de Edmund Ho no final do próximo mês.
Ora, o staff do antigo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura tem interpretado aquela norma como proibindo qualquer destas actividades antes de iniciadas as duas semanas de campanha eleitoral (entre o décimo quinto dia anterior e as 24 horas da antevéspera do dia do sufrágio).
Já algumas vozes vieram a terreiro manifestar a sua discordância face a tão restritiva leitura do dispositivo legal. Fê-lo, por exemplo, o director do Ponto Final num excelente editorial de 26 de Maio último e fi-lo eu próprio há três dias, em declarações ao Hoje Macau. É claro que as nossas palavras parecem condenadas a cair em saco roto, até porque a Comissão de Assuntos Eleitorais do Chefe do Executivo já terá pendido para a visão reducionista do exercício dos direitos políticos e de expressão dos candidatos.
Não querendo repisar os meus próprios argumentos, decidi fazer uma breve pesquisa sobre o que tem sido escrito em outras latitudes, mormente em Portugal, cuja lei eleitoral da Assembleia da República (Lei n.º 14/79, de 16 de Maio), inequivocamente, inspirou o quadro legal de Macau.
Cheguei, assim, a um recente parecer da Comissão Nacional de Eleições, despoletado por queixas partidárias contra certos procedimentos de algumas autarquias, onde se pode ler que a propaganda política é livre, «não podendo o seu exercício, na medida em que decorre da liberdade de expressão, ser condicionado por qualquer entidade, pública ou privada, e pode ser desenvolvida livremente fora ou dentro dos períodos eleitorais», apenas com «as proibições e limitações» previstas na lei.
Falando em autarquias, a página na Internet do município de Mirandela dedica uma extensa e interessante secção ao esclarecimento dos eleitores sobre os sufrágios locais. Nela, à pergunta «antes de iniciada a campanha eleitoral, podem os partidos desenvolver actividades de propaganda gráfica e sonora, nomeadamente afixando cartazes com apelos ao voto», é dada a seguinte resposta: «sim. A propaganda é livre a todo o tempo, mas sempre com observância das limitações legais, respeitando-se, designadamente, monumentos nacionais, edifícios religiosos, sedes de órgãos de soberania, bem como a segurança das pessoas ou das coisas». Mais à frente, questiona-se: «se os partidos podem fazer propaganda política em qualquer altura, para que serve, então, a campanha eleitoral?». A reacção é elucidativa: «a campanha eleitoral é um período durante o qual o Estado faculta aos partidos concorrentes às eleições, em condições de igualdade, meios adicionais de propaganda para permitir que os partidos políticos com menos recursos económicos, bem como, nestas eleições, os grupos de cidadãos eleitores, possam também transmitir as suas mensagens e assegurar, dessa forma, a igualdade possível entre os candidatos» ‑ preocupação de que a nossa lei eleitoral para o Chefe do Executivo também cura na secção dedicada à campanha eleitoral (artigos 48.º e seguintes).
Só mais um exemplo: António Caetano de Sousa, Juiz Conselheiro, Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Angola e coordenador das primeiras eleições gerais do país, realizadas em 1992, publicou, anos mais tarde, um texto intitulado «Propaganda eleitoral e meios de comunicação social, benefícios, proibições e sanções» (Paraná Eleitoral, n.º 33, Julho de 1999), sustentado nos normativos constitucionais da sua nação, do Brasil, de Portugal e de Espanha, e ainda num documento das Nações Unidas. Nesse trabalho, refere que «as leis eleitorais não impedem a propaganda eleitoral fora dos períodos eleitorais, mas ela assume particular relevância e só é especialmente protegida durante a campanha eleitoral. É neste período que os partidos políticos e candidatos se degladiam para fazer valer o seu poder de influência junto dos eleitores (...). A propaganda política é uma actividade típica da campanha, mas aquela é mais vasta do que esta e abrange, em geral, toda a actividade, desenvolvida ou não no decurso da campanha eleitoral propriamente dita, de difusão de mensagens político-eleitorais (...). Esta actividade deve desde logo ser pautada pelo princípio, constitucionalmente consagrado, da liberdade de propaganda, ela própria decorrente das liberdades de expressão, reunião e manifestação (...). Para evitar a violação dos princípios básicos que devem nortear a campanha eleitoral e assegurar o respeito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos susceptíveis de colidir com o desenrolar da campanha, as diversas leis eleitorais consagram expressamente um conjunto de regras específicas e determinadas sobre a distribuição de meios públicos e fixam o uso de meios privados e a forma e os limites da propaganda eleitoral a desenvolver naquele período».
Julgo, pois, corroborado por todas estas fontes aquilo que expressei ao Hoje Macau: as nossas disposições legais atinentes ao período de campanha eleitoral pretendem enquadrar a actuação dos candidatos nessa fase e assegurar-lhes um tratamento de igualdade aos mais diversos níveis; em particular, nas relações com a comunicação social e com as entidades públicas. Não podem nem devem, por isso, servir para cercear o normal exercício dos seus direitos e liberdades; nem, por outro lado, para que estes, convenientemente, se escusem a responder às interpelações dos media e a esclarecer a população sobre os seus programas políticos.
Ainda falta mais de um mês para o início do período de campanha eleitoral. Espero, então, ter contribuído para que estes trinta e tal dias sejam devidamente aproveitados pelos intérpretes do processo que vai definir o futuro do território, sem mais subterfúgios estéreis e infundados.

Nota: agradeço ao Bairro do Oriente a menção desta crónica na sua habitual rubrica «Leituras» desta semana.

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