quinta-feira, 29 de maio de 2008

Maleitas do subsídio

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
29 de Maio de 2008

Ouvi no telejornal de segunda-feira passada que tinham duplicado os pedidos de atribuição de bilhete de identidade de residente de Macau (BIRM) desde que o Governo anunciou que ia distribuir um subsídio de três ou cinco mil patacas a todos os residentes do território. Os Serviços de Identificação já tiveram que alargar o seu horário de funcionamento e os bancos também se preparam para um previsível aumento de solicitações de abertura de conta, ainda que só os funcionários públicos, os bolseiros do ensino superior e os beneficiários do Instituto de Acção Social vão receber o dinheiro por transferência bancária (os demais contemplados vão ter um cheque na sua caixa de correio).
Interpelado pela câmara da TDM quando tratava do seu BIRM, um cidadão chinês natural de Macau, mas a residir em Hong Kong há vinte anos, afirmou com a maior das descontracções que o Governo «está a desperdiçar dinheiro e eu regressei para reclamar os meus direitos». Falaram-me, também, de compatriotas nossos há muito regressados a Portugal que estarão a programar vindas ao território em Julho, para receberem as suas patacas. O subsídio servirá, nestes casos, para custear boa parte de umas simpáticas férias na terra onde em tempos trabalharam.
Eis, a meu ver, dois exemplos bem elucidativos da necessidade de o Governo ter balizado os alvos desta singular medida. O mínimo que se justificava era que só quem aqui se encontrasse presentemente a viver ou estivesse ausente apenas a título temporário (por exemplo, por motivo de estudos) deveria ter direito ao subsídio. Afinal, que sentido faz uma pessoa que já não habita em Macau há vinte anos ser abrangida por esta benesse? Nenhum! Não entra para as estatísticas dos desfavorecidos locais, não contribui com o seu trabalho, investimento ou aforro para a economia da região e, provavelmente, não vai aqui gastar o dinheiro (ao menos, não contribuirá para o aumento da inflação, também é verdade...), pelo que lhe entregar algumas notas de mil é, de facto, delapidar o erário público. Pense-se na diferença que os milhões de patacas que vão ser desbaratados desta forma fariam para tantas famílias de Macau! E não me venham dizer que posso dar o exemplo e abdicar do meu subsídio, porque não seria esse meu gesto que levaria qualquer desses cidadãos ausentes a prescindir do descabido bónus.
Por outro lado, tenho ouvido diversas mães – algumas delas, solteiras ou divorciadas – a se queixarem de que os filhos já reivindicaram o direito a fazer o que quiserem da sua quota-parte da maquia que vai entrar lá em casa. A pensar nisto, o Governo anunciou agora que os menores de dezoito anos só poderão aceder ao dinheiro através dos progenitores, mas não me é difícil imaginar as cenas de “pressão psicológica” que vão ocorrer em muitos lares por parte de adolescentes desejosos de comprar o novo modelo de telemóvel, leitor de MP3 ou consola de jogos. Quase que apostaria que vamos assistir a grandes campanhas de produtos do género no comércio local durante os meses de Verão... Mais uma vez, abdicar do meu subsídio não ia ajudar a resolver este problema.
É claro que o Governo está a braços com um dilema sem aparente solução: se recua e decide restringir os beneficiários, está a corroborar as acusações de que tomou uma medida precipitada, fruto da proximidade do Primeiro de Maio e da passagem da tocha olímpica por Macau; se mantém o universalismo da decisão, poupa, talvez, em custos administrativos, mas comete injustiças flagrantíssimas e esbanja recursos públicos. E poderia continuar: se arrepia caminho, caem-lhe em cima todos os que têm incorrido em encargos para regressar ao território e regularizar os seus documentos de identificação, assim como quaisquer outros excluídos que não tenham especiais problemas de pudor; se não se desvia da rota já traçada, perde legitimidade para invocar de futuro o habitual argumento da necessidade de melhor ponderar a despesa pública antes de atender a outras situações de grave carência (como quando diz que é necessário encomendar primeiro um estudo a um consultor internacional). Que venha o diabo e escolha...

2 comentários:

Anónimo disse...

FUNDAMENTO E CRITÉRIO DA DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA

É generalizadamente admitido que uma das funções do poder político, normalmente organizado sob a forma de Estado, o que não acontece em Macau que não é um Estado soberano ou semi-soberano, é a promoção da justiça social, conceito oriundo do séc. XIX.
Na perspectiva económica, a justiça social é a justa distribuição da riqueza. Ao Estado cabe então, para promover a justiça social, eleger os melhores critérios de distribuição da riqueza.
O Estado pode pura e simplesmente não intervir, confiando que o “mercado” espontaneamente distribui de forma adequada (hipótese A). Pode intervir integralmente detendo a propriedade de todos os meios de produção de riqueza e todos os canais de repartição (hipótese B). Ou pode intervir parcialmente deixando a propriedade dos meios de produção aos particulares e exigindo-lhe a entrega de uma parte da riqueza por eles produzida para o próprio Estado distribuir, assegurando serviços, subsidiando actividades e pessoas, dando prémios de incentivo, etc. (hipótese C).
O “Estado” de Macau é desta última categoria: não detém meios de produção e não prescinde de intervir na distribuição da riqueza por eles gerada. Os critérios que segue não os vou aqui questionar. Não vou questionar se exige uma fatia grande ou pequena aos detentores dos meios de produção de riqueza (recentemente uma das concessionárias do jogo disse que poderia ser reduzida essa fatia), se escolhe correctamente os serviços que deve assegurar, como a saúde, a educação, a segurança, a justiça, etc., nem se os assegura a um nível de qualidade compatível com a fatia que lhe é entregue pelos particulares geradores de riqueza.
Na hipótese A) o critério de distribuição é claro e conhecido: “laissez faire”. Fica a ideia que se entende que quem gera a riqueza é que deve ficar com ela se quiser.
Na segunda hipótese o critério invocado por todos os Estados que a praticam é “exigir de cada um de acordo com as suas possibilidades e dar a cada um de acordo com as suas necessidades”. Porém, na prática, esta pureza ideológica descamba muitas vezes numa distribuição de acordo com a real vontade do detentor do poder político chegando a atingir a fórmula: “primeiro para mim e depois também ...”. O critério de distribuição invocado é muitas vezes diferente do praticado.
Na terceira hipótese adensa-se a complexidade do critério de repartição (surgem elaboradas teorias como a de Schumpeter, a conhecida por Coeficiente de Gini e a designada de Índice de Desenvolvimento Humano - IDH).
Creio que o critério de repartição não deixa de ser influenciado pela natureza da actividade que gera a riqueza e pela forma como o repartidor sente a sua legitimidade para a repartir. Por exemplo, em Angola e na Noruega a imensa riqueza gerada pela exploração do petróleo é repartida de forma abissalmente diferente: a natureza da actividade criadora de riqueza é a mesma, mas o repartidor sente de forma diferente a sua legitimidade para a repartir. No Mónaco e na Suíça, por um lado, e na Alemanha, por outro, a natureza da actividade produtora de riqueza é completamente diferente, mas a perspectiva sobre o fundamento legitimador para repartir é semelhante.
E em Macau, terá a natureza da actividade produtora da riqueza e a perspectiva do repartidor sobre a sua legitimidade para repartir, influência sobre o critério de repartição? Estou convicto que o critério de repartição é absolutamente determinado pela perspectiva que o repartidor tem sobre a sua legitimidade para repartir e pela natureza do acto criador da riqueza.
A actividade que em Macau gera o grosso da riqueza a repartir é o jogo. Ora, dinheiro que não custa a ganhar, não custa a gastar. E, na perspectiva do jogador, a obtenção de riqueza depende da sorte, desprezando-se o mérito, a competência, a qualidade, a contrapartida e afins. Países como a Alemanha e o Japão lutam diariamente pela qualidade como forma de gerar mais riqueza. A repartição é criteriosa e é o espelho da actividade geradora. Em Macau, se a repartição for o espelho da actividade geradora, não tem critério e depende do acaso ou da sorte. O repartidor, quando exige aos criadores da riqueza uma fatia da riqueza criada, sente-se na obrigação de a repartir com critérios fundamentados para respeitar o trabalho árduo levado a cabo para a produzir. E o criador da riqueza está atento e interessado em saber como o repartidor gasta a riqueza que custou a criar – ganhou consciência cívica. Mas se a riqueza é criada com grande facilidade, nem o repartidor sente que tem que ter respeito pela criação, nem o criador quer saber como foi gasta. Não lhes interessa se foi dada a quem não precisa, se foi feita uma rotunda e dias depois uma estrada em linha recta, etc. Pode até o repartidor usá-la para fins alheios à justiça social. Ao criador tanto lhe faz e ao repartidor nada lhe impõe , em jeito do imperativo categórico de Kant, que procure um critério legitimador.
E o repartidor em Macau (o governo) sentirá que a repartição só é legítima se contribuir para o aumento do bem estar social, para a melhoria do nível de vida da colectividade e para a construção de uma sociedade mais evoluída e mais consciente? Ou sentirá o repartidor que tem uma legitimidade imanente e que a sua vontade é fundamento legitimador suficiente, não necessitando de despender energias na busca do melhor critério repartidor? Nesta segunda hipótese, nem sequer é necessário o critério de que a repartição seja para evitar manifestações contra o repartidor, que seja para ficar lembrado pela memória futura do povo que agradece a sua dádiva. E nem é necessário que o critério seja fruto do arrependimento do repartidor que está consciente que, tendo o dever e os meios necessários, não contribuiu o suficiente para o aumento da qualidade de vida e que já não tem tempo para o fazer porque em breve vai terminar as funções de repartidor. Nem sequer é necessário invocar que é um reconhecimento à sociedade que, com rigor e mérito, se organizou de modo irrepreensível e criou muita riqueza, como acontece, em Andorra ou Singapura. Nem sequer é necessário invocar, em claro erro de palmatória na cadeira de economia, que a repartição tem por critério combater a inflação.
Se a riqueza foi produzida sem grande esforço e o repartidor tem legitimidade imanente para decidir como a reparte, então não pode ser censurado qualquer critério de repartição ou a ausência dele. É o jogo que gera a riqueza, é a sorte que a distribui. Uns são residentes permanentes recebem mais – melhor sorte. Outros não são permanentes, recebem menos – menor sorte a deles. Uns roubaram o “Estado” – recebem. Uns devem ao “Estado” impostos, multas, facturas de hospital, etc. – recebem. Uns estão presos por terem prejudicado a melhoria da sociedade, tráfico de droga, corrupção, poluição, “escravatura”, etc. - recebem. Uns nada precisam – recebem. Uns não sabem como gastar – recebem. Uns nada produzem (ninguém disse que quem mais produziu, mais deveria receber) nem estão em Macau há 20 ou 30 anos – recebem.

Quando a legitimidade não é imanente de onde vem a legitimidade do repartidor para exigir de uns e dar a outros? Do voto do povo que o elegeu, povo esse que tinha o poder de o escolher para repartir. E se não foi eleito pelo povo? Nesse caso a sua legitimidade estará assegurada pelo simples facto de deter o poder? A legitimidade só estará assegurada se o critério distribuidor for justo, isto é, enquadrado pelos valores comunitariamente aceites – se contribuir para o aumento da justiça social auxiliando quem não pode produzir, formando quem tem capacidade para produzir, premiando quem sobressaiu na contribuição para o avanço da sociedade e melhorando a qualidade de vida, quer no acesso à saúde, à cultura, ao desporto, ao ambiente saudável ou ao lazer. De contrário, o acto repartidor será ilegítimo. A busca do melhor critério para distribuição da riqueza deve ser tarefa permanente dos políticos que são aqueles que sentem que têm a capacidade de orientar a sociedade, mas uma busca criteriosa é mais premente em épocas de escassez pois pode até haver convulsões sociais para uma classe ter acesso à riqueza que só outras têm.

A natureza da actividade criadora da riqueza, o fundamento da legitimidade do repartidor e a abundância ou escassez sentidas individualmente interferem no CRITÉRIO.

Estou na dúvida se em Macau o repartidor adoptou o critério repartidor do jogo ou do Zé do Telhado. O Zé do Telhado, reza a lenda, tirava aos ricos e dava aos pobres, em Macau contribuem os ricos casinos e recebem todos os residentes, pobres ou não, pelo que não foi o Zé do Telhado que determinou o repartidor, embora talvez o tenha influenciado. O jogo determina que só quem joga pode receber prémios, dependendo da sua sorte, ora todos vão receber prémios sem jogarem embora o montante do prémio dependa de alguma álea. O critério do jogo não determinou o repartidor, embora talvez o tenha influenciado.
Será que o repartidor se prepara para inverter as regras do jogo? O prémio vai sair a quem não joga. Sai sempre, não dependendo da sorte. Creio, pois, que haverá mesmo uma inversão das regras do jogo e da repartição da riqueza. Desta vez, em Macau, o repartidor, quis virara as coisas do avesso. Antigamente jogava-se para sair o prémio, agora, o repartidor vai dar o prémio para irmos depois jogar (não é obrigatório). Antigamente o repartidor exigia aos criadores de riqueza e distribuía-a pelos que precisavam, agora, o repartidor recolheu riqueza e vai mandar devolvê-la aos casinos, mas só através dos residentes, quer necessitem, quer não necessitem. E já li que há residentes que não querem ajudar o repartidor nesta tarefa: Dizem que vão pegar no cheque e não o vão levar ao casino, antes o vão dar a instituições de solidariedade e até aconselhavam a não levantarem o cheque do repartidor e não fazer o transporte até ao casino. Não pode ser: O repartidor está arrependido, temos de ajudá-lo. Cobrou impostos aos casinos, não melhorou o nível de vida da sociedade de Macau. Quer devolver o dinheiro, respeitando o espírito de Macau – o espírito do JOGO. Nada de boicotes.

Nuno Lima Bastos disse...

Obrigado pelo extenso contributo! Gostaria era de saber quem foi o autor de tão elaborado texto.

Cumprimentos!