quinta-feira, 15 de maio de 2008

A vontade da maioria

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
15 de Maio de 2008

Num momento em que a tragédia de Sichuan congrega as atenções de toda a China e do exterior, ficámos a saber que o Conselho Executivo já concluiu a análise do projecto de revisão das leis eleitorais do território. Não obstante quase 7500 opiniões recolhidas ao longo de um mês de auscultação pública, poucas foram as alterações introduzidas ao texto inicial do Governo, como reconheceram o porta-voz do Conselho Executivo, Tong Chi Kin, e a Secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan.
Julgo, por isso, que não vale a pena gastar o meu latim a dissecar as escassas novidades, até porque os nossos jornalistas já o fizeram e bem. Limito-me, assim, a reiterar o que já ontem disse ao Ponto Final: a única inovação de peso é a aplicação do regime da responsabilidade solidária a todos os candidatos de cada lista – se um deles for condenado por corrupção eleitoral, toda a votação nas suas cores é invalidada e os eventuais deputados saídos das suas fileiras perdem o lugar, que terá que ser preenchido através do recurso a uma eleição suplementar. Mas, como também defendi junto do Ponto Final, isto parece-me uma medida tão óbvia que devia ter constado logo do documento inicial do Governo, e só compreendo que o não tenha sido por falta de coragem política. Pelos vistos, o feedback dos cidadãos terá dado ao Executivo o suplemento vitamínico necessário para avançar com ela.
Já me pareceu bastante inapropriado que Florinda Chan tivesse usado os resultados da consulta para sustentar que a maioria da população de Macau não desejava o aprofundamento da democracia, tal como inadequados foram os argumentos a que recorreu para chegar a essa conclusão. Desde logo, porque o texto submetido à apreciação pública não continha qualquer proposta a esse nível. Pelo contrário, chegava a insinuar que o momento não era oportuno para se mexer nisso, ao usar expressões como «é adequado o regime eleitoral da RAEM definido de acordo com a Lei Básica e tendo em conta a realidade de Macau» (ou seja, para esta realidade, o regime deve ser este), «o regime de sufrágio indirecto é uma característica do regime eleitoral de Macau» (portanto, é para continuar) ou «o mais importante neste momento é elevar a qualidade das eleições e consolidar os frutos democráticos obtidos» (os já obtidos; nada de procurar novos frutos). Era, pois, presumível, que a esmagadora maioria das pessoas se limitasse a comentar as propostas concretas que lhe estavam a ser colocadas à frente.
Depois, por muito que a titular da pasta da Administração e Justiça venha agora alegar que «não proibimos que enviassem outras opiniões», a verdade é que, quando a interpelei pessoalmente na sessão de esclarecimento de 10 de Março último, alvitrando o aumento do número de parlamentares eleitos por sufrágio universal, foi inflexível a me responder que esse assunto não estava em apreciação, que «a democracia não é só números, mas, sobretudo, qualidade» e que essas decisões cabiam exclusivamente a Pequim (no que remeto para a minha crónica de 13 de Março). Idênticas respostas receberam os deputados do Novo Macau Democrático e Pereira Coutinho em outros momentos. Em suma, outras sugestões eram aceites, mas apenas dentro do escopo do projecto governamental. Se não era essa a intenção, então explicaram-se muito mal, para não ir mais longe.
Ainda assim, Florinda Chan veio reconhecer que houve «algumas» opiniões do teor da minha, mas que «a corrente predominante vai no sentido do apoio da população às propostas apresentadas e ao combate com eficácia da corrupção». Corrijo: havia um documento de consulta que versava em exclusivo sobre determinadas matérias e foi, naturalmente, sobre elas que os cidadãos se pronunciaram. Extrair daí que o povo de Macau rejeita todas as mudanças que não constavam do documento é subverter completamente a noção do que é uma consulta e é aproveitar abusivamente a boa fé de quem nela participou para criar mais uma arma de arremesso contra a reforma do sistema político.
A representante do Governo afirmou, finalmente, que «há ainda tarefas a efectuar» para que o processo de democratização possa progredir, assim justificando a impossibilidade de o contemplar neste pacote legislativo. Pergunto-me: que mastodônticas tarefas serão necessárias para que haja, por exemplo, mais dois “míseros” lugares de deputado sufragados directamente por todos nós?
Se as autoridades de Macau desejam, realmente, saber o que pensa o seu povo da democracia, deixo-lhes duas sugestões muito simples: façam uma consulta pública sobre isso (e não sobre outros assuntos) ou vão mais longe e organizem um referendo. O resto é música ou má fé.

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