A comissão de Regimento e Mandatos da Assembleia vai tentar resolver hoje um dilema até agora nunca suscitado no órgão legislativo da RAEM: quais são os limites do trabalho das comissões? Podem alterar os princípios gerais de um articulado? E qual é a linha que separa a filosofia de um articulado das suas soluções concretas? O PONTO FINAL antecipa opiniões sobre a matéria.
Isabel Castro
Ponto Final
7 de Abril de 2009
Em quase 10 anos de Assembleia Legislativa (AL), os deputados nunca chumbaram um articulado proposto pelo Governo. Frequentemente, são feitos reparos a aspectos concretos do diploma logo na sua apreciação na generalidade, mas estas críticas jamais foram acompanhadas por um cartão vermelho colectivo às iniciativas legislativas do Executivo.
As dúvidas e alertas servem, isso sim, para garantir que o Governo vai abrir a porta a futuras alterações, a introduzir em sede de comissão. Até há bem pouco tempo, esta estratégia política funcionou de forma satisfatória, pelo menos em termos públicos.
Há situações em que este “falso” consenso na aprovação na generalidade dá origem a prolongados processos legislativos - o caso da lei das relações laborais é um bom exemplo, com o diploma final a ser substancialmente diferente daquele que deu entrada na Assembleia.
Porém, na quinta-feira da semana passada, e a propósito das alterações à tabela do imposto do selo, David Chow colocou uma questão que apanhou todos de surpresa, incluindo a presidente da AL: pode a comissão alterar, de modo significativo, uma proposta de lei? O regimento da Assembleia permite que assim seja?
Em causa está o valor do imposto do selo. A proposta original previa uma percentagem igual para todas as aquisições de imóveis, independentemente do seu valor. Em sede de comissão, o Governo concordou com a criação de escalões, uma proposta feita pelos membros do grupo de trabalho especializado, na sequência de uma hipótese veiculada durante o debate na especialidade.
Negócio arriscado
Sendo certo que a criação destes escalões tributários não apanhou ninguém de surpresa, por disso se ter falado no plenário, não deixa de ser igualmente legítimo o argumento usado por David Chow - não foi esta a lei que o deputado aprovou na generalidade. Ele e os restantes deputados.
Para o jurista Nuno Lima Bastos, o problema prende-se, desde logo, com a forma como é feita a votação na generalidade. “É uma carta branca para depois se introduzirem alterações que podem não corresponder ao espírito do diploma”, disse, em declarações ao PONTO FINAL.
“Há deputados que não concordam com determinadas soluções concretas, mas que aceitam as propostas em termos gerais, à espera da adequação das soluções concretas aos princípios do diploma, algo que o regimento da AL prevê”, continua.
A negociação feita aquando do plenário com o proponente da lei pode dar origem a duas situações: as alterações pretendidas não serem feitas em sede de comissão ou, então, as modificações introduzidas serem “de fundo e implicarem os princípios gerais do diploma” previamente aprovados.
O ex-deputado Jorge Fão entende que o caso concreto da tabela do imposto do selo é a concretização dos perigos deste tipo de negociações. “A comissão não pode mexer em tudo, não pode sair da filosofia da proposta”, defende. “Quando a proposta foi aprovada, os deputados concordaram com os valores nela incluídos.”
Fão, que esteve na AL entre 2001 e 2005, entende que a comissão agiu de boa fé e reconhece dignidade ao princípio que levou à criação dos escalões - quem tem menos paga menos, quem tem mais paga mais.
Porém, sustenta, “esta filosofia não devia ser aplicada nesta fase, porque a economia está em baixo, é preciso estimular o mercado imobiliário”. Foi esta a justificação dada pelo secretário para a Economia, Francis Tam, aquando da apresentação do articulado. “Sendo esta a intenção, deve haver só um valor para todos”, reitera o ex-deputado. Ao se criarem escalões, alterou-se a “filosofia” ou “os princípios gerais” da proposta.
Iniciativas limitadas
Nuno Lima Bastos entende que, por trás deste imbróglio que hoje a AL vai tentar resolver, está uma questão de fundo: as limitações dos poderes dos deputados em relação à sua capacidade de iniciativa legislativa.
“Os deputados não têm iniciativa legislativa originária em termos de propostas ou de alterações de articulados que têm como proponente o Governo quando em causa estão receitas e despesas públicas e a estrutura política”, entre outras matérias.
Ou seja, os deputados não só não podem avançar com projectos de lei sem terem a aprovação do Chefe do Executivo por escrito, como não podem fazer modificações a propostas de lei sobre estes assuntos se o Executivo não autorizar. E assim fica explicada a necessidade de garantir, na generalidade, a disponibilidade do proponente no referente a alterações em sede de comissão.
“A Assembleia fica de mãos atadas se, em sede de especialidade, o Governo não quiser fazer determinadas alterações.” No caso em análise, Francis Tam cedeu à pretensão dos deputados defensores da criação de escalões. Será difícil voltar à estaca zero: “Na especialidade, os deputados não vão poder alterar novamente sem o Governo concordar.”
A reserva de iniciativa legislativa da AL está prevista na Lei Básica da RAEM, sendo que o próprio regimento do órgão faz referência a estes limites.
A eterna harmonia
Os deputados têm toda a liberdade de chumbar uma proposta do Governo da RAEM. Mas isso nunca aconteceu e mesmo o diploma mais controverso dos últimos tempos - a lei de prevenção e repressão da corrupção no sector privado - acabou por ser aprovada, com as tais promessas de melhorias em sede de comissão.
Não seria mais fácil recusar um diploma pouco consensual ou com problemas técnicos na generalidade, explicar a razão do chumbo e aguardar por uma nova proposta, em vez da “carta branca” que se remete para a comissão?
“O poder legislativo e a Administração pretendem dar uma imagem de bom relacionamento entre os dois órgãos”, afirma Jorge Fão. E esta necessidade de consenso entre as partes “acaba por dar origem a estas situações”, conclui o ex-deputado.
No processo das alterações à tabela do imposto do selo, as modificações feitas são “muito visíveis, são concretas”. O articulado tem apenas três normas e diz respeito a “números”, o que facilita a identificação das alterações, o que por vezes não acontece em diplomas de maior densidade técnica ou em assuntos mais distantes da realidade dos deputados.
Para Jorge Fão, dada a “pouca formação jurídica da maioria dos deputados”, as actuais limitações impostas pelo sistema e a lógica consensual da política local, resta apenas esperar que os assessores jurídicos da AL saibam conduzir os deputados e explicar a diferença entre os princípios gerais de um diploma e aquilo que o regimento prevê, a adequação das soluções concretas à filosofia da proposta. “A Administração também não pode estar sempre a fazer cedências”, remata o ex-deputado.
A comissão de Regimento e Mandatos é presidida pelo deputado Chui Sai Cheong, eleito por via indirecta em representação dos interesses profissionais. Integram o grupo de trabalho a “Operária” Leong Iok Wa, os deputados Sam Chan Io e Philip Xavier (ambos nomeados pelo Chefe do Executivo e com formação em Direito), Kou Hoi In, Iong Weng Ian e Au Kam San.
Serão eles a decidir se a 3ª comissão permanente agiu dentro dos seus limites ou não. Se não for detectado qualquer problema, então o diploma volta ao plenário para a votação na especialidade. Em caso contrário, será entregue a uma nova comissão.
A estrutura numérica da AL faz com que haja membros que ocupam funções em mais do que uma comissão. Philip Xavier e Kou Hoi In integram a 3ª comissão permanente e a comissão de Regimento e Mandatos. Assim sendo, são hoje chamados a pronunciarem-se sobre o trabalho realizado por uma comissão da qual também fazem parte.
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