quinta-feira, 23 de abril de 2009

Em que ficamos?

Nuno Lima Bastos
Jornal Tribuna de Macau
23 de Abril de 2009

Continua o interminável debate sobre a pertinência da apresentação de uma lista “macaense” ao próximo sufrágio parlamentar do território. Por entre muitas diferenças de opinião, um ponto merece unanimidade: a questão tem sido sempre colocada demasiado em cima dos actos eleitorais, quando devia ser feito um trabalho de fundo ao longo dos anos, como tem feito Pereira Coutinho, por exemplo. Tirando isso, parece haver opiniões para todos os gostos...
Não me querendo repetir, pois já aflorei esta matéria há três semanas (na sequência da mesa redonda organizada pela Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau, AIPIM), gostaria de clarificar algumas ideias. Desde logo, dá-me vontade de dizer que, como português, nada tenho a ver com este assunto!
Repare-se: quando celebramos o 10 de Junho, somos todos portugueses. Assistimos ao hastear da bandeira no consulado, vamos à gruta de Camões e terminamos o dia no croquete e batatinha do antigo Bela Vista (tirando Jorge Fão, que já declarou nunca mais lá meter os pés, por estar farto dos nossos governantes de Lisboa – e quem o pode censurar?). Sempre que vem alguma individualidade da metrópole, idem, aspas, aspas: o ritual do beija-mão perpassa toda a sociedade luso-falante, seja nascida no Fai Chi Kei ou em Bragança, passando por Timor, Índia, África e ilhas atlânticas. Afinal, o português é a nossa pátria, como dizia Fernando Pessoa.
Quando se debatem temas fundamentais como o modelo de funcionamento (e a própria continuidade) da Escola Portuguesa, a actividade do consulado em geral ou a emissão de documentos de identificação e de viagem em particular, também parecemos estar todos no mesmo barco (*).
Até que chega o cheirinho a poder. Aí, já não somos todos portugueses. “Somos” macaenses e há que procurar que o “quinhão” não seja repartido com os “tugas”: é porque o Governo Central convida os representantes da comunidade macaense para irem em delegação até Pequim, é porque a China reconhece a importância da comunidade macaense, é porque o Chefe do Executivo conta com a comunidade macaense, é porque a Santa Casa da Misericórdia ou a APIM estão reservadas a membros da comunidade macaense (ainda que esta, anacronicamente, integre a Fundação Escola Portuguesa de Macau...), é porque, enfim, a comunidade macaense deve unir-se e apresentar a sua própria candidatura à Assembleia Legislativa.
O engraçado no meio disto tudo é que, depois, parece que ainda vêm apelar ao meu voto! Quer dizer, “eu” não sou “macaense” para coisíssima nenhuma: posso trabalhar cá a vida toda, casar cá, ter filhos cá, servir as instituições da RAEM, mas nunca integrarei aquele grupo “restrito” dos “filhos da terra”. E, quando toca a pensar em sufrágios, só sirvo mesmo para lhes dar o meu voto, nada mais. A comunidade é deles, os candidatos são deles, o projecto é deles, os interesses são deles. E dizem-no sem qualquer preocupação de susceptibilizar os “outros”, os tais que apenas contam para neles votar e nada mais.
O contrário é que já não pode ser! Basta recordarmos certas reacções quando, em 2001, se começou a desenhar a criação da Casa de Portugal e pairou no ar a remotíssima hipótese de ser uma associação de metropolitanos, dado que as colectividades locais pareciam fechar-nos as portas: houve logo quem a alcunhasse de “casa do galito de Barcelos”. Pois é: um lado arroga-se a tudo dizer e tudo poder; ao outro, exigem-se “pezinhos de lã” (eufemismo de “comer e calar”, alternativa a “estão mal, mudem-se”).
Meus amigos, estou como o Carlos Couto (quem foi ao debate da AIPIM sabe do que estou a falar): para mim, isto esteve sempre resolvido – somos todos portugueses! Sempre, nos bons e nos maus momentos. Quando Portugal era poder e agora que a China é o soberano. Quando falamos de futebol e quando falamos de política. Quando os governantes de Lisboa se lembram de nós e quando nos esquecem. Porque Portugal, a nossa pátria, está acima de tudo isso. Antecedeu-nos e sobreviver-nos-á.
É verdade que também sou madeirense e isso moldou, naturalmente, certas características e afinidades minhas. E é nesse sentido que o macaense também tem o seu espaço próprio, que deve ser respeitado e estimulado. É, afinal, uma das concretizações do universalismo português, com maiores especificidades em algumas latitudes do que noutras (a miscigenação, por exemplo).
Mas não se usem essas especificidades como arma de discriminação e joguetes políticos! Quando muito não seja, porque os macaenses, se são relevantes no contexto da China enquanto comunidade, é por via da sua costela lusitana. Sem isso, o que os distinguiria no seu todo? Sem esse elemento, seriam completamente absorvidos pela população chinesa, sem apelo nem agravo. Donde resulta que, quanto mais se esbater a característica portuguesa de Macau, menos relevantes serão as especificidades da comunidade macaense para a China.
Seria bom que compreendêssemos isto de uma vez por todas e deixássemos de fazer certas distinções em função das conveniências do momento. E não, nunca pedirei desculpa por ser “apenas” português...

(*) Adenda: no meu portuguesíssimo hábito de escrever estas crónicas sempre em cima da hora, acabei por olvidar o interessante paralelo com as eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas, que é um órgão de Portugal, com funções de consulta e apoio ao Governo português nas matérias atinentes aos emigrantes portugueses. Ora, a comunidade "macaense" - considerada no seu auto-proclamado conceito estrito, que exclui os "metropolitanos" como eu - não corresponde à noção de emigrantes portugueses; desde logo, porque vive na sua terra natal! No entanto, os representantes deste círculo naquele órgão são todos naturais daqui, sendo que o próprio presidente do seu Conselho Permanente é um macaense (o Dr. Fernando Gomes)! Ora, alguém alguma vez ouviu qualquer voz representativa dos "metropolitanos" se insurgir contra isso? Ou a classe política ou as autoridades portuguesas? Não, nunca! Mais uma vez, estamos todos no mesmo barco e somos todos iguais perante Portugal. É pena que esta consideração (que é de todo o direito!), muitas vezes, pareça só existir de um lado... Muita reflexão, é o que recomendo...

Nota: agradeço ao Bairro do Oriente e ao Exílio de Andarilho as lisonjeiras referências a esta crónica.

15 comentários:

RG disse...

Caro Nuno,
Nada como chamar os ditos cujos pelos nomes e dizer de uma forma clara o que me muitos sentem e que por comodismo e quiça falta de coragem vai sendo sentido e dito em surdina. As coisas acontecem quando têm que acontecer, como diz um amigo meu e este seu artigo veio na hora certa, talvez ajude a clarificar as situações e a separar as águas. Os meus parabéns e o meu apoio. Aquele abraço.

Nuno Lima Bastos disse...

Muito obrigado pelas suas palavras!
Um abraço amigo.

Paulo Godinho disse...

Caro Nuno,
Nunca tinha comentado nenhum dos teus "posts" (o termo português "postas" continua a não me convencer...) mas não resisto a comentar este e de uma forma muito sucinta: na "mouche"!
Temos as nossas divergências, algumas bem conhecidas, mas, neste caso, subscrevo a 500% (se a matemática o permitir...).
Um abraço!

Nuno Lima Bastos disse...

Caro Paulo,
Muito obrigado pelo apoio!
Grande abraço.

Anónimo disse...

Muito bem. Faltou discorrer sobre a conclusão que parece inevitável: tem de haver três listas, ou seja, a do Coutinho, a dos «macaenses» e a dos «tugas»...

Unknown disse...

Estimado Nuno
Longe das crónicas de Macau, recebi enviado por um amigo esta que subscreves. Na mouche como disse P Godinho. Subscrevo. Eu com 60 anos de idade distribuídos por Goa (10 anos), Moçambique (16 anos), Portugal (14 anos) e Macau (20 anos) o que serei?
Um abraço
C Azevedo

Nuno Lima Bastos disse...

Caro leitor da 1h31,

Obrigado! Quanto ao número de listas, confesso-me mais inclinado para a sugestão que Ricardo Pinto aventou no seu editorial do Ponto Final de 27 de Março (salvo erro): Pereira Coutinho ceder o número dois da sua lista a um compatriota "metropolitano". Isso sim, seria uma lista da comunidade!

Cumprimentos!

Nuno Lima Bastos disse...

Caríssimo C.A.,

Há quanto tempo! Bons ventos te tragam!
Obrigado pelo teu contributo. O que serás? Um português do mundo, com mais anos de Macau do que de Portugal! Quando nos reencontrarmos, é provável que falemos de Macau como quem está a falar da sua terra, mas explicar isso a certas pessoas é complicado...

Um abraço e até qualquer dia!

Silvie disse...

Parabéns pelo artigo! Tens muita razão no que argumentas, diria que concordo "quase" inteiramente com o teu ponto de vista. Penso também que está na hora de os "tugas" assumirem-se mais como Macaenses no seu sentido mais lato deixando de sofrer do eterno "síndroma da provisioriedade".
Um abraço!

Anónimo disse...

Boa malha.

Jorge Morbey disse...

Senhor Dr. Lima Bastos,

Antes éramos todos portugueses. A dicotomia era entre reinóis e macaenses. Mais tarde, metropolitanos e macaenses.

Como é do conhecimento geral, quando na China se refere um "pequinense" ou um "xanganês", utiliza-se a expressão "Beijing ren" ou "Xangai ren". Exactamente como em Portugal quando nos referimos a um portuense ou lisboeta.

A fixação dos portugueses em Macau complicou a rotulagem tradicional chinesa relativa à terra de origem dos naturais de Macau.

Deste modo, a designação "Ao Men Ren"/"Ou Mun Yan" refere-se APENAS aos chineses naturais de Macau. De entre estes, os que se convertiam à Religião Católica recebiam a designação de "tchon kao", entrado na religião/cristão novo. Os macaenses, isto é, OS EURO-ASIÁTICOS DE ASCENDÊNCIA PORTUGUESA NASCIDOS EM MACAU e na China (Hong Kong,Xangai,Cantão Tianjin)recebiam a designação "tou san", isto é, filhos da terra, locais. Resta referir a designação pouco simpática que se reservava aos portugueses não nascidos em Macau: "Ngau sok"=tio boi, "Ngau po"=mulherona vaca, "Kuai lo"= diabo gajo. Ainda que estas designações sejam também usadas pelos macaenses relativamente aos "reinóis", em circunstâncias menos agradáveis, os metropolitanos em ocasiões mal humoradas referiam-se a eles também depreciativamente chamando-os "macaios". Já em Hong Kong e Xangai, os macaenses e seus descendentes aí nascidos orgulhavam-se de serem designados por "portugueses de Hong Kong ou de Xangai", mesmo quando já não se conseguiam exprimir em Português padrão.

Como se sabe, sempre houve macaenses em todos os estratos sociais em Portugal, sem qualquer tipo de discriminação. Já em Macau, a "cidadania macaense" plena só era conferida à primeira geração de euro-asiáticos de ascendência portuguesa aqui nascidos.
Esta é a tradição. E ela funda-se na dimensão da sociedade macaense. Mais selectiva devido à sua menor dimensão e à sua pluralidade étnica, de que relevava como a mais importante a herança biológica lusa. Que após 1999, juntamente com a herança cultural portuguesa, são os marcadores principais da distinção positiva que os macaenses têm recebido das autoridades chinesas.
Mas, é claro, quando chega o "cheirinho do poder", é natural que se reservem o direito de o disputar sem o partilharem com os "reinóis". Trata-se de um direito que lhes advém da sua filiação à terra de Macau, uma "jus solis macanensis". Não têm outra. Apenas esta. É a luta pela vida.
É legítimo o sentimento de pertença a Macau de um velho residente nascido nos Açores ou em Trás-os-Montes que são realidades estáveis e para onde há sempre hipótese de retorno. Tanto quanto é legítimo o sentimento de exclusividade do macaense pela terra que o viu nascer, pelo secular sentimento de precariedade pela posse de Macau pelos portugueses.

Muitos cumprimentos.

Nuno Lima Bastos disse...

Obrigado, Silvie (e ao leitor seguinte), e também concordo que devíamos fugir a esse "síndroma", embora ele seja uma característica muito portuguesa (é a outra face da eterna saudade de Portugal). No entanto, julgo que isso não resolveria a questão em que se centra a minha crónica. Aliás, digo-o ali.

Por outro lado, os próprios "macaenses" (em sentido estrito) têm emigrado aos milhares para países tão distantes como o Canadá, a Austrália ou o Brasil (além de Portugal, claro), nunca mais voltando a viver no território, nem sequer depois se reformarem. Será que os macaenses que aqui permaneceram os consideram menos da terra por isso? Parece que não, tanto que até foi criado o Conselho das Comunidades Macaenses (é claro que quem está fora não faz sombra a ninguém...).

Já o "tuga" que aqui se fixou e contribui diariamente para a sociedade de Macau há-de ser sempre visto como um forasteiro, desde que isso convenha a certos interesses...

Pobre História!

PS: enquanto escrevia esta resposta, reparei que apareceu outra mensagem, do leitor Jorge. A ela darei a merecida atenção amanhã, que já se faz tarde.

Macaense de Lisboa disse...

Eu sou um português nascido e criado em Lisboa mas que já vive aqui á largos anos, com bastantes amigos macaenses.

Penso que o Sr. Nuno Lima Bastos não está a ver a questão como ela deve ser vista.
Ele reivindica que numa suposta lista portuguesa o nº dois deverá ser um português de Portugal e não um macaense.
Em 1º lugar não conheço nenhum português de Portugal que esteja disposto a isso (será que o Sr. Nuno está disposto a ser o nº dois do Sr Coutinho?).
Aliás com ou sem Coutinho, não estou a ver nenhum português de Portugal que queira candidatar-se, pelo menos os mais conhecidos.

Em 2º lugar uma lista, qualquer que ela seja, para ser eleita tem de ter votos suficientes. E em Macau ter votos suficientes significa votos de chineses, coisa que o Sr. Coutinho tem conseguido angariar, senão não teria sido eleito.
Acha que um português de Portugal que não fala a lingua chinesa consegue passar a sua mensagem e persuadir chineses a votarem nele?

Os macaenses estão mais bem preparados para defender os interesses de todos os portugueses.
Têm conhecimentos de lingua chinesa, conhecem bem a terra, tem maior facilidade em lidar com a comunidade chinesa e um relacionamento mais íntimo com as autoridades centrais.

Não creio que haja uma agenda macaense e interesses macaenses que colidam com os interesses de todos os outros portugueses no que diz respeito á continuação da sua vida em Macau e da relaçao entre os portugueses de Macau e a China e o Governo Central.

E já é hora de acabar com essa distinção cretina entre macaenses e portugueses.
O Sr. Nuno Lima Bastos não utiliza estas palavras mas há muitos que o fazem
Não existem macaenses e portugueses.
Apenas existem portugueses.
Porque os macaenses também são portugueses.
Mesmo quando alguns adquiriram a nacionalidade chinesa, não creio que o sentimento de portugalidade tenha desaparecido, pelo menos por enquanto.

Anónimo disse...

Estamos de acordo sobre as premissas, mas a solução aventada pelo parece menos boa: se o Pereira Coutinho cedesse o número dois da sua lista a um compatriota "metropolitano", isso não seria visto como uma lista da comunidade mas sim como uma manobra eleitoral. O próprio já disse que a lista macaense só existe para lhe roubar votos. Já se a lista dita "macaense" incorporasse um "tuga", tal seria mais abrangente. Porém, nenhuma das duas parece genuinamente interessada em tal abertura. Do lado macaense nem sequer há um candidato credível, mas o postulado parece ser que tem de haver um, mesmo que seja um jovem desconhecido. Já do lado dos "tugas" há muitos e bons candidatos pensáveis em abstracto, com intervenção cívica, como os advogados Amélia António ou João Miguel Barros, pessoas que pensam pela própria cabeça, não têm medo, e deveriam ser cabeças de lista e não número dois.

Nuno Lima Bastos disse...

Agradeço aos leitores as últimas três mensagens, todas elas contributos muitos interessantes para este debate. Optei por não lhes responder logo, para deixar que aparecessem mais reacções.

Entretanto, tendo em conta não só as mensagens aqui recebidas, como também os últimos desenvolvimentos sobre o assunto (mormente, diversas declarações publicadas nos jornais locais), julgo ser oportuno voltar a ele na minha crónica semanal do JTM. Deixo, pois, a minha resposta aos últimos três comentários para o JTM da próxima quinta-feira.

Cumprimentos a todos e obrigado pela atenção.